São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Alemanha tem escola de livreiros

LUCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Escondida em meio aos bosques das colinas de Seckbach, na periferia de Frankfurt, ergue-se uma instituição única no mundo: a Escola Alemã de Livreiros. Por ela passam, em cada período letivo, cerca de 900 alunos, inscritos nos cursos profissionalizantes de formação ou especialização, ou nos seminários e cursos compactos. Na escola, encontram à sua disposição três bibliotecas, somando cerca de 40 mil volumes, uma livraria simulada para ensino, um amplo restaurante, quadras esportivas e dormitórios com 160 vagas. Parece exagero para uma profissão de vendedor que, em outros países, não se aprende na escola. Mas para Herbert Degenhardt, diretor da instituição, todos os esforços são válidos para fazer chegar às mãos do leitor, da melhor forma possível, "a sagrada mercadoria do livro", como diz, citando Brecht.
Nesta entrevista, concedida à Folha em Frankfurt, Degenhardt detalha o perfil do livreiro ideal e explica porque uma escola nos moldes da que dirige ainda não se viabilizou em outros países.
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Folha - A Escola Alemã de Livreiros foi uma experiência pioneira na Alemanha e na Europa?
Herbert Degenhardt - O precursor de nossa escola, o Instituto de Ensino aos Livreiros, fundado em 1853 em Leipzig, foi pioneiro na época. De todo modo, a Escola Alemã de Livreiros pode ser considerada pioneira, pois até hoje não existe nada desse tipo no mundo. Vêm surgindo iniciativas semelhantes, que há pouco estiveram representadas num congresso internacional em Guadalajara. Mas trata-se quase sempre de cursos de especialização, porque nos outros países o sistema de ensino é diferente do alemão. Temos aqui outras 380 profissões ensinadas exatamente da mesma maneira.
Folha - Quais as mudanças que ocorreram na escola, desde que se instituiu o ensino público profissionalizante de livreiros na Alemanha?
Degenhardt - Originalmente, o curso, chamado de "formação supra-empresarial", durava seis semanas. Vigora na Alemanha um sistema educacional dual, isto é, os aprendizes devem primeiro procurar uma empresa e nela receberem um treinamento; paralelamente, devem frequentar uma escola profissionalizante. Esses dois cursos formam a base a partir da qual, após dois ou três anos, o aprendiz faz um exame final e se torna um livreiro profissional.
Antigamente, os aprendizes iam para a escola pública profissionalizante e depois frequentavam a nossa escola por mais seis semanas, como curso de extensão, para adquirir conhecimentos que nas escolas públicas, por diferentes razões, não eram transmitidos. Por exemplo, informações sobre confecção de livros e outros assuntos editoriais, ou sobre como compor o estoque de uma livraria, ou sobre literatura; essas matérias não são ensinadas na escola pública, mas constam do nosso currículo. Com a transformação de nossa escola em curso profissionalizante substitutivo, os aprendizes podem frequentá-la em lugar da pública, completando os estudos ao final de nove semanas e recebendo um diploma oficialmente reconhecido.
Folha - Uma escola como está só poderia existir na Alemanha?
Degenhardt - O ensino profissionalizante é prioridade do governo alemão. Como nossa escola é substitutiva do ensino público profissionalizante, assumindo uma parte do programa oficial, temos o direito moral de ir ao Estado e dizer, enquanto instituição privada, onde se deve economizar para que possamos receber maiores subsídios. E o Estado também reconhece sua obrigação moral nesse sentido. Num país onde não existe tal formação profissional pública, o Estado não tem motivos para financiar uma escola particular. Este é o primeiro pressuposto para nossa existência.
O segundo pressuposto é que temos na Alemanha, Suíça e Austria, em função da situação histórica, uma associação, na qual editores, livreiros, atacadistas e mesmo agentes literários e comerciantes de livros antigos estão juntos, apesar de todos os conflitos de interesses. Trata-se da Associação da Bolsa Alemã do Comércio de Livros, que logo completará 170 anos. Não é, portanto, mérito nosso, mas dos editores e livreiros alemães do século passado. Tal associação não existe na maioria dos países. Em geral, há uma associação de editores e outra de livreiros. Entre nós, o editor também é um livreiro. Em outros países ele é o "publisher".
Folha - Para um livreiro alemão, a formação profissional é obrigatória?
Degenhardt - Não, não é. Pode-se abrir uma livraria ou trabalhar nela sem ser livreiro formado.
Folha - De que camadas sociais provém a maioria dos alunos?
Degenhardt - Isso não é questionado. Mas sabemos que nos últimos 12 anos tivemos uma grande porcentagem de alunos com segundo grau completo. Antigamente, a formação média dos alunos era inferior. Hoje há muitos universitários, inclusive já com grau de mestre ou doutor. Normalmente são estudantes da área de humanas, especialmente Letras. Na maior parte são mulheres –80%–, que deveriam estar lecionando. Mas como atualmente na Alemanha há um excesso de profissionais nesse campo. Para muitos jovens, o ramo de livreiro é o mais "acadêmico" dentre as profissões não-acadêmicas.
Folha - Como o senhor descreveria o livreiro ideal?
Degenhardt - Em primedro lugar, naturalmente, ele precisa ter uma ligação com o livro, precisa gostar de ler. Isso acontece na maioria dos casos. A dificuldade para muitos que se iniciam é quando percebem que a profissão de livreiro é a de um vendedor. Sofrem com o aprendizado das regras comerciais de contabilidade, escrituração e economia, com o que não tinham contado antes. Claro que um livreiro não precisa fazer tanta contabilidade como um escriturário, mas deve ter um sentido para assuntos econômicos e saber estabelecer uma ligação entre as coisas do espírito e do comércio. Precisa ter consciência de que está lidando com uma mercadoria especial, como dizia Brecht: "A sagrada mercadoria do livro".
Tudo depende, naturalmente, do ramo em que vai se empregar. O diretor de uma seção de beletrística tem também de se comportar como vendedor, não pode simplesmente encomendar aquilo que o agrada, mas aquilo que vende. Evidentemente, terá uma relação com a literatura diferente da de alguém que trabalha com direito ou tributos. Por fim, precisa saber lidar com os fregueses, ter bom relacionamento humano.
Folha - O que aprendem os estudantes estrangeiros que frequentam a escola?
Degenhardt - Os estudantes estrangeiros não frequentam o curso substitutivo profissionalizante, porque não precisam dele. Os dois países de língua alemã –suíços e austríacos–, também sujeitos ao sistema dual, fazem o curso supraprofissional, que dura quatro semanas. Os demais frequentam apenas os seminários, de quatro dias a uma semana. Recebemos ainda muitas delegações estrangeiras, que, em visita ao país, querem conhecer-nos. Recentemente esteve aqui uma delegação chinesa, antes dela vieram delegações dos países da antiga União Soviética.
Folha - O senhor poderia falar um pouco de suas atividades no exterior? Sei que já esteve no Brasil e em outros países, organizando seminários e conferências sobre a formação de livreiros.
Degenhardt - De regra, minhas atividades no exterior se referem a seminários sobre o ensino profissionalizante, nos quais discorro sobre as experiências dos cursos de formação e extensão. O problema, tanto no Brasil quanto em outros países, é que a formação de livreiros não está ligada a um estudo profissionalizante. As pessoas aprendem na prática, e não frequentando uma escola. Por exemplo, as escolas de livreiros na França são um curso de extensão universitário. Faz-se primeiro o mestrado e depois pode-se estudar a ciência do livro.
Mas nossa escola não tem nada a ver com a universidade, leva a uma atividade prática. Isto me chamou a atenção nas escolas representadas em Guadalajara, como a canadense ou mesmo a de Guadalajara, ligadas à universidade. As disciplinas universitárias são também ensinadas, e o aluno é levado a continuar trabalhando no âmbito da universidade, também por razões de prestígio.
Folha - Qual a função dos eventos culturais organizados na escola?
Degenhardt - Temos aqui diariamente oito horas de aula, ou seja, 40 horas por semana. Como os alunos estudam em regime de internato, temos a possibilidade de oferecer-lhes programas vespertinos, que completam as aulas de modo descontraído. Organizamos toda uma série de leituras feitas por autores, além de apresentações e exposições de editoras. É importante que uma escola que ensina sobre o estoque e a ampliação do comércio livreiro também proporcione um contato com as editoras.

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