São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Betinho não quer só comida

HELOISA HELVECIA

Betinho não quer só comida
Bateu a fome de fazer. Betinho aproveitou a brisa ética que estava aí, soprou novas atitudes contra misérias físicas e mentais, engoliu o país. A campanha começou diferente, bagunçada, calcada mais em indíviduo, menos em instituição. Prendeu pela emoção empresários, artistas, trabalhadores, estudantes, cabeleireiros, prefeitos, presidente. 1994 vai ter mais, diz Herbert de Souza, o bom começo, a cara e o coração da Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida.
O sucesso dá a Betinho orgulho, bons presságios e muita chateação. Oportunistas farejam a sua sala no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, em Botafogo, Rio de Janeiro – entidade que dirige desde 89 e que lhe rendeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos (92). É gente tentando tomar carona na onda, gente querendo misturar essa luta a outras, querendo ganhar com a solidariedade. Betinho sabe como fazer. Põe seu olho limpo na cara do sujeito, escuta as propostas e já sabe que vantagem maria leva. "Sei me livrar disso, mas é um risco permanente."
Partidos políticos também aborreceram, ao mostrar falta de sintonia na frequência que contaminou, em nove meses de movimento, Rio, São Paulo, Brasília, Minas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Bahia, Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul. Betinho quer vingança no processo eleitoral. Quer ver qual candidato escapa das perguntas de eleitores, formados nos 3.000 comitês, sobre comida, agricultura, emprego, terra. "A fome vai ser o tema do ano no Brasil e no mundo."
Chato mesmo foi aguentar discursos da turma que enxergou na mobilização só uma corrente de esmola. A turma de "teóricos e ideólogos", como diz um irônico e escaldado ex-militante da Ação Popular que hoje, aos 58, só podia mesmo desprezar dogmas. A campanha contra a fome não quer só comida, óbvio. Os comitês se alimentam de planos de criação de empregos, tratam de políticas públicas, distribuição de renda, profissionalização, educação. Ainda assim, Betinho ouviu "n" vezes que "é preciso ensinar a pescar e não dar o peixe". Sociólogo e mestre em política, escutou à náusea explicações didáticas sobre a "reforma estrutural" que deveria preceder tudo. Mas por onde se começa uma reforma? "Tem gente que convive com a miséria achando que ela é parte de um processo e remete a cura ao ano três mil e tanto, quando já não existirá essa humanidade que está aqui." Betinho, como tem pressa e rabo preso com a vida, apontou um começo.
Entre as novas conquistas do movimento, encantaram Betinho um motorista de táxi carioca multado duas vezes por insistir em circular com adesivo da campanha; o sucesso de um comitê de Itumbiara (RJ) que conseguiu 91 hectares da empresa Furnas para plantar arroz e alimentar 700 famílias; a Prefeitura de Santos, que criou 500 empregos em 20 dias; a taróloga que passou a cobrar dez quilos de arroz por consulta. Mas a conquista principal foi feita dentro de casa.
O filho Henrique, de 12 anos, avesso a aparecer, só passou a mostrar algum entusiasmo com a campanha no final do ano, depois de ser arrastado pelo pai a um almoço com o presidente do Flamengo e o jogador Gilmar. A "isca" para convencer o menino tímido a participar da homenagem ao pai, conta um Betinho empolgado, foi a camisa do time, autografada por todos os jogadores para Henrique. "Ele é uma criança muito sensível, muito perspicaz, mas acho que se sente incomodado com tudo isso", diz Betinho.
Henrique tem companhia paterna só nos finais de semana. Mas Betinho é do tipo que já contou muitas histórias ao pé da cama. Histórias engajadas, naturalmente. Acaba de lançar o livro "A Zeropéia", sobre a centopéia que acaba se lascando por ser muito maria-vai-com-as-outras. A fábula fazia sucesso com Daniel, o outro filho (do primeiro casamento), que hoje, aos 28, é dançarino. Betinho tem mais quatro livrinhos engatilhados.
A mulher, Maria Nakano, é parte da luta de Betinho. Filha de imigrantes japoneses, também foi militante da AP e batalhou pelo companheiro, viajando atrás dele no período de exílio. "Tive sorte de encontrar Maria. Ela não é minha, eu não sou dela e estamos juntos há 23 anos. O segredo é achar uma pessoa que não seja apropriadora". Maria é a "grande sorte" entre muitos azares: as mortes dos irmãos Henfil (cartunista) e Chico (Francisco Mário, músico), hemofílicos como ele, e vitimas, como ele, de Aids contraída em transfusão de sangue. "Quando Chico e Henfil eram vivos, eu tinha o hábito de chegar em casa e telefonar para eles. Uma coisa que senti com as mortes foi não ter mais quem chamar."
Betinho corre risco de vida e tem cuidados com a saúde desde que se entende por gente. Diz que é um "paciente profissional". Hoje, tenta manter os 47 quilos em meio a uma carga louca de inaugurações, conferências, seminários, lançamentos e homenagens. Faz tratamento preventivo para Aids, diagnosticada em 1985, e cumpre uma rotina pesada de remédios – vitaminas e AZT. Em outubro, com a campanha a mil por hora, chegou a participar de cinco atos num só dia, em Belo Horizonte, e foi à beira de um estresse. O médico proibiu viagens. "Graças a Deus", suspirou.
Não era o que Betinho dizia para as montanhas de proibições que marcaram a infância de hemofílico. "Era muita doença, muita hemorragia no joelho, na perna, no braço, muita prisão domiciliar. Era muito 'não'." Não subir na árvore, não andar a cavalo, não sair na janela. A família não tinha know-how de tratamento de hemofilia, avalia. Dos 15 aos 18 anos, tuberculoso, foi desenganado, ficou preso num quarto no fundo do quintal da casa, separado dos irmãos, que o espiavam de longe. A casa em Bocaiúva, Minas Gerais, parecia uma rodoviária: pai, mãe, os três meninos e três irmãs, mais velhas, fora os agregados.Betinho, louco pela vida, acabou vencendo a tuberculose. Teve pouca convivência com Henfil e Chico na infância, por causa da doença. "Veio o golpe, saí de casa e só voltei a conviver com eles já adultos, depois do exílio."
Betinho foi e é símbolo daquele que volta, do sonho da anistia que virou música de Aldir Blanc e realidade em 79. A partir de 83, começou a articular e participar da campanha nacional pela reforma agrária. Em 86, virou símbolo da questão do sangue e da luta contra a Aids, como presidente da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids). Em todas as crises da cidade do Rio, Betinho aparecia com sua mania de cidadão, que trocou a cartilha do "tudo pelo social" pela afirmação dos direitos e capacidades pessoais. Em 91, ganhou o prêmio Global 500 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, por causa da luta por reforma agrária e defesa dos índios. Estava, lógico, na Eco-92. Por último, animou o grande arrastão pelo impeachment, episódio em que seus maiores adversários – os pessimistas – foram lindamente derrotados. "Pessimista se entrega ao bandido, ao status quo, é essencialmente um conservador. Ao não acreditar em mudanças, contribui para que nada mude", diz. "Não sou otimista babaca, mas otimista ativo".
Pior que os pessimistas, só os chatos que a sequência de vitórias tem atraído para perto dele. Mesmo desligado desse "problema de Deus", o ex-católico Betinho diz que, contra as criaturas sem senso de oportunidade, costuma invocar uma prece aprendida com frei Mateus, meio pai, meio líder e grande amigo que morreu num desastre de carro, aumentando a coleção de perdas de Betinho. É assim: "Meu Deus, minha oração se faz em termos exatos. Fazei com que os maus se transformem em bons e que os bons não sejam chatos."

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