São Paulo, quarta-feira, 5 de janeiro de 1994
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São Paulo

ANTONIO DELFIM NETTO

Todos sabemos que São Paulo foi o mais eficaz propagador da fé cristã. Na sua primeira carta aos corintios (capítulo 9; 18-22), ele diz que a sua recompensa é apenas oferecer a verdade do Evangelho, sem usar a sua autoridade e sem nenhum ônus.
"Ainda que eu não seja escravo de ninguém, transformo-me em escravo de todos para convencer o maior número", nos diz ele. "Eu sou um judeu aos judeus. Um fraco entre os fracos. Um fora-da-lei junto aos foras-da-lei, para melhor trazê-los à fé cristã." E termina dizendo que "eu me transformei em todas as coisas para todos os homens, para salvar pelo menos alguns deles".
Temos de reconhecer que nossos charmosos e competentes tecnocratas têm sido verdadeiros "são paulos" no esforço de conversão dos miseráveis gentios que professam o paganismo aritmético-egoísta.
Dentro do governo –um governo que ficará conhecido por apor vetos aos seus próprios projetos–, eles são duros governistas que pregam a austeridade. Ao mesmo tempo em que cortam a receita de Estados e municípios em 19%, aumentam os gastos com pessoal da União em termos reais em nada menos do que 24%.
Ao mesmo tempo em que, corretamente, enfrentam o ex-líder governista da Câmara, que pretendia readmitir 50 ou 100 mil funcionários (quem sabe quantos serão?), aumentam as despesas (despesa total menos transferências, pessoal e benefícios) de 15 para 24 bilhões de dólares (60%).
Têm uma vida ingrata, pois há muito pouco tempo o próprio ministro da Administração descobriu que faltavam mais de 50 mil funcionários públicos!
Com os trabalhadores, eles assumem o papel de trabalhadores. Juram que não pretendem reduzir o salário real (mas de onde sairão os recursos reais que vão para o governo?).
Afirmam que nada têm a ver com a idéia de fixar o salário pela média na misteriosa unidade real de referência. E lhes prometem a vida venturosa da livre negociação, o que na verdade é muito bom. Assim o salário real será cortado sem nenhuma cumplicidade das autoridades. Mas o desemprego? Ora, o desemprego é produto das taxas de juros reais produzidas pelo "mercado salvador", contra o qual nada podem fazer!
Nas suas visitas aos empresários, eles assumem o papel de "de cujus". Concordam que o que falta é governo. Que os desperdícios são imensos. Que o Estado foi destruído. Que a "Constituição Cidadã" foi uma tragédia porque a União se omitiu (mas quem fez a Constituição e quem era a União em 1988?).
E, no fim, acabam deixando a entender ser o aumento de alíquota de 5% apenas o bode mal-cheiroso da famosa anedota soviética! Mas recomendam aos empresários que pressionem o Congresso para aprovar o Fundo Social de Emergência. Porque ou é ele (o Fundo!) ou a hiperinflação...
Nossos tecnocratas e Ieltsin estão na mesma situação. Se não lhe derem o que querem, uns entregarão aos brasileiros a hiperinflação e o outro, aos russos, a guerra civil. Usam para converter a autoridade e o terror que São Paulo recusava.

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