São Paulo, quinta-feira, 6 de janeiro de 1994
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O papel estratégico da reforma tarifária

HELSON BRAGA <PW:POPUP,2,0.5>CLAUDIA

HELSON BRAGA
No dia 1.º de julho passado, o governo concluiu um programa de redução gradual das alíquotas do imposto de importação, iniciado ainda no governo anterior, que baixou para 14,2% a alíquota média de 32,3% vigente em 1990. Isso depois de já ter sido eliminado todo um conjunto de barreiras não-tarifárias, que deixou a tarifa aduaneira como o único instrumento de proteção à indústria nacional.
Tem-se argumentado que esta proteção continua elevada e que, por isso, a economia brasileira encontra-se entre as mais fechadas do mundo. Com efeito, a tarifa média da Argentina é de 10,3%; do Chile 11,0%; e do México 10,0%. Por outro lado, enquanto as importações representam 6,1% do PIB brasileiro, esta relação é de 31,2% na Alemanha, 21,8% na França e 25% no Reino Unido.
Há, no entanto, fundadas razões para que se considerem estes resultados bastante satisfatórios. Em primeiro lugar, porque embora exista ainda um amplo espaço par aumentar a razão importações/PIB, não é realista imaginar que um país do tamanho do Brasil venha a apresentar, estruturalmente, um grau de abertura semelhante aos registrados por países pequenos, tais como o Chile (31,3%), o Paraguai (32,1%) e o Uruguai (21,3%). As diferenças são bem menores quando comparamos com os Estados Unidos (11,2%), a Argentina (8,1%) e o Japão (7,8%).
Entretanto, a principal razão deste julgamento favorável da reforma tarifária está no seu papel estratégico dentro do modelo de desenvolvimento que, bem ou mal, o Brasil vem tentando implantar neste começo de década, em substituição ao modelo protecionista, intervencionista e cartorial que vigorou desde o pós-guerra e cuja falência é, agora, reconhecida por todos. Além da liberalização do comércio exterior, os novos ingredientes são a privatização de empresas estatais, o "enxugamento" da máquina administrativa, a desregulamentação de diversas atividades e a liberalização de preços, câmbio e salários.
No novo modelo, o grande desafio passa a ser o de promover a eficiência do sistema produtivo. Acostumada a uma confortável proteção contra a competição externa e a um crônico processo inflacionário (que dificulta a percepção dos preços relativos, tornando pouco relevante o cuidado para com os custos de produção), a indústria brasileira cresceu e se diversificou sem grandes preocupações quanto à eficiência produtiva. O sucesso do novo modelo depende, entretanto, da mudança de ênfase do crescimento meramente quantitativo (à base de ocupação dos "espaços vazios") para o qualitativo, onde a palavra de ordem é a eficiência produtiva.
É precisamente aí que reside o papel estratégico da reforma tarifária: a pressão competitiva trazida pelas importações representa a forma mais segura para forçar a busca de eficiência produtiva, mediante o emprego de tecnologias mais adequadas e de métodos gerenciais mais modernos. Resultados tais como competitividade, qualidade e preço de produtos, bem como maior respeito aos direitos do consumidor, virão naturalmente como consequência da pressão competitiva induzida pelas importações.
Por mais relevantes e oportunos que sejam os esforços do governo para promover a divulgação e a conscientização desses conceitos, somente a ameaça real de desaparecimento ou de perda expressiva de parcelas de mercado, representada pela concorrência dos importados, trará a preocupação com a eficiência e a produtividade. A indústria automobilística fornece, hoje, um exemplo bastante ilustrativo das vantagens da abertura comercial.
Um aspecto importante a ressaltar é que este efeito benéfico não depende de um grande volume de importações: a mera possibilidade de importação já será suficiente para criar um ambiente competitivo e indutor da eficiência produtiva. É o que os economistas chamam de "concorrência potencial".
A lógica da tarifa aduaneira é a de proporcionar uma margem de proteção ao produtor doméstico "vis-à-vis" seu concorrente estrangeiro. Quando se fixa uma tarifa de 10%, por exemplo, estamos dizendo que, além dos custos de frete e seguro, incorridos pelo produto estrangeiro para chegar ao mercado brasileiro, vamos encarecê-lo em mais 10% com a incidência do imposto de importação. É como se reconhecessemos o direito de o produtor doméstico ser 10% menos eficiente que seu concorrente estrangeiro.
Parece realista considerar que a maior parte da indústria brasileira dificilmente vai poder dispensar tal tipo de proteção. Mas convém mantê-la, em razão de uma suposta "preferência social" por um determinado grau de diversificação da estrutura industrial. Em algum momento mais à frente será necessário voltar-se à discussão sobre o nível de proteção "socialmente desejável/tolerável" a ser concedido a indústria.
A prudência sugere, no entanto, dar um tempo para digerir a reforma recém-concluída. Sobretudo, porque as altas taxas de juros, a carga tributária elevada e a desarrumação geral da economia brasileira impõem hoje uma sobrecarga ao produtor nacional que não encontra paralelo nos nossos principais concorrentes comerciais.
Independentemente de se promover ou não este segundo "round" de reduções tarifárias, estão pendentes alguns desdobramentos da primeira fase, que requerem equacionamento. O primeiro deles é que não foi levado em conta o conceito de proteção efetiva, que é o relevante para definir o grau de proteção proporcionado pelo conjunto da estrutura tarifária às atividades produtivas. Quando as alíquotas nominais (legais) diferem, a proteção efetiva resultante para as várias atividades podem ser substancialmente distintas das tarifas nominais, que são aquelas que os "policy makers" podem ficar e com as quais imaginam estar protegendo as indústria.
A única forma de se assegurar que a proteção desejada (efetiva) se aproxime da contida nas tabelas publicadas pelo governo é reduzir substancialmente a dispersão das tarifas nominais (no limite, as tarifas efetiva e nominal se equivalem quando esta é uniforme). Assim, por paradoxal que pareça, não deveria haver tarifa igual a zero. As tarifas abaixo da média desejada deveriam ser aumentadas para se aproximarem gradualmente daquele nível.
A segunda pendência tem a ver com a estratégia de implementação e se refere a ausência de um programa de apoio ao ajustamento estrutural e à necessidade de um mecanismo ágil e eficiente de combate às práticas de "dumping". A expectativa é de que esta última questão possa ser solucionada com a recente criação, no âmbito do MICT, de um Conselho Técnico Consultivo para tratar das alterações de alíquotas do imposto de importação e da imposição de direitos "antidumping" e de direitos compensatórios contra práticas desleais de comércio.
Quanto ao programa de apoio, a questão central a considerar é que uma reforma tarifária, na extensão da que foi feita, implica no desaparecimento de determinadas atividades/empresas, ou na redução significtiva do seu tamanho na economia/mercado. Assim, além de tempo (o que foi dado pelo esquema gradualista de redução das tarifas) para o ajustamento às novas condições de concorrência, haveria que se proporcionar recursos e facilidades para investimento em produtividade, treinamento de mão-de-obra e conversão para novas linhas de produção. Em contrapartida, outras atividades receberão impulso neste novo quadro e precisarão ser apoiadas. O ideal seria o envolvimento do BNDES nesse tipo de programa. Uma sinalização nesse sentido pode ter sido dada com a declaração do novo presidente do banco, em seu discurso de posse, de que pretende redirecionar o BNDES para operar no contexto de uma economia aberta.
No final do processo de ajustamento, a estrutura industrial brasileira estará significativamente alterada: haverá menos artificialismo e maior coerência com as vantagens comparativas do país. É precisamente nisso que consiste a mudança estrutural que resulta dos processos de abertura econômica.
HELSON C. BRAGA, 50, é secretário-executivo do Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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