São Paulo, quinta-feira, 6 de janeiro de 1994
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'Caligari' desvenda a alma da Alemanha

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Seis anos depois da estréia de "O Gabinete do Dr. Caligari", um de seus roteristas, Hans Janowitz, esteve em Paris com o conde Etienne de Beaumont e dele ouviu a reclamação: – "O filme é tão fascinante e obscuro como a alma alemã. Ele anuncia alguma coisa de sério. A alma francesa falou na Revolução. Todo mundo espera pelo que vocês têm a revelar ao mundo". O conde não precisou esperar muito. Em menos de dez anos o nazismo era uma "coisa séria" e, queiram ou não os historiadores, revelava uma expressão fascinente e obscura da alma alemã.
Em 1913, Janowitz perambulava por Hamburgo atrás de uma moça pela qual se apaixonara. Encontrou-a num parque de diversões, percebeu que ela fora atraída a uma barraca onde se exibia um hipnotizador. Perdeu-a de vista. No dia seguinte, acharam a moça estrangulada num matagal próximo ao parque. Janowitz foi ao enterro e viu, escondido entre as colunas da igreja, o hipnotizador. Este seria o embrião do filme mais importante do expressionismo alemão.
Carl Mayer, o outro roterista, tivera problemas durante a 1.ª guerra mundial, quando fora torturado por oficiais do Corpo de Saúde. Ao ser desmobilizado, pretendia escrever um livro contando os horrores a que fora submetido. Tornando-se amigo de Janowitz, resolveram fundir as histórias numa só. Nascia o filme mas faltava o nome. Eles liam algumas cartas de Stendhal (sempre Stendhal nessas embrulhadas!), e descobriram o nome de um oficial que o escritor conhecera em Milão: Caligari. O roteiro estava pronto.
Dois jovens estudantes, enamorados da mesma moça, vão ao parque de diversões. O hipnotizador Caligari (Werner Krauss) orienta um sonâmbulo (Conrad Veidt – anos mais tarde ele seria o oficial nazista de "Casablanca") e através dele prevê a morte dos espectadores. Diversos crimes acontecem na cidade. Os estudantes suspeitam de Caligari, a moça será a próxima vítima. Sobre telhados recurvos, meio góticos, meio cubistas, o sonâmbulo caminha para apunhalar a moça. Ela é salva pelos estudantes que denunciam Caligari à polícia. Nas buscas, revela-se que Caligari é apenas um louco, não um criminoso. Os estudantes procuram o diretor do hospício, famoso por suas pesquisas sobre a loucura: é o próprio Caligari. Assim resumida, a sinopse poderia parecer um plágio macabro de "O Alienista" de Machado de Assis.
A história é recusada pela Decla-Bioscop, ancestral da UFA que se tornaria a Embrafilme do nazismo. Armou-se uma equipe para mexer no roteiro e dela fizeram parte Fritz Lang, (que seria o diretor) e F.W. Murnau. Deus fez o cavalo e uma comissão fez o camelo: decidiram manter o original como núcleo do filme, transformando-o num longo "flash back". Convocaram um profissional, o Dr. Robert Wiene, que assinaria a obra. Ele sugeriu um preâmbulo e uma espécie de apoteose no fim. A história central seria o conto de um louco, "a tale of idiot" como em Shakespeare. Caligari não era um assassino, os horrores da tirania, os poderes sobrenaturais do líder seriam o delírio de jovens obcecados pelo ideal de um amor inatingível.
Aprovado o roteiro, os cenógrafos executaram num espaço mínimo aquele que seria o cenário mais original do cinema: nascia o expressionismo alemão em conteúdo e forma. "Caligari" abriu o caminho para "Nosferatu", para a série do Dr. Marbuse, para "Metrópolis", "O Vampiro de Dusseldorf", "A Rua" e, sobretudo, para "Variedades".
Em 1946, quando Siegfried Kracauer lançou o livro "De Caligari a Hitler", a resposta ao conde de Beaumont já havia sido dada pela história.

Filme: O Gabinete do Dr. Caligari
Diretor: Robert Wiene
Produção: Alemanha, 1919
Elenco: Werner Krauss, Conrad Veidt, Lil Dagover
Distribuição: Continental Home Video (av. Brigadeiro Luiz Antônio, 1404, sobreloja 21-D2, tel. 011-284-9479)

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