São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Fellini se recusa a sair de cartaz

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Fellini não desencarna da mídia. Entra semana, sai semana, ei-lo de volta aos jornais com alguma novidade: um texto inédito, trechos de entrevistas nunca ou só por poucos ouvidas e lidas, confissões inauditas de um e outro comparsa. Não seria exagero concluir que, ao menos na imprensa, ele está mais vivo do que quando ainda fazia filmes –seus últimos filmes, bem entendido.
Vivo até na América. Haja vista a polêmica desencadeada por Bruce Weber, o crítico de teatro, não o fotógrafo, nas páginas do "New York Times". Fellini ainda estava no hospital quando Weber caiu na esparrela de cometer um artigo esnobando todos os filmes dele. Martin Scorsese, fellinófilo desde os 12 anos (quando viu "A Estrada da Vida"), ficou apoplético. Não satisfeito em enviar uma irada carta ao jornal, interpelou Weber por telefone. Semamas antes, no próprio "Times", dedicara um comovente panegírico a Fellini, então objeto de uma retrospectiva em Manhattan. Aquela altura, convicto de sua recuperação, Scorsese já levantara US$ 1 milhão para a próxima aventura cinematográfica do mestre italiano.
Qual seria? Não se sabe ao certo. Vários projetos se atropelavam na mente de Fellini; todos, por sinal, orçados em mais ou menos US$ 4 milhões. Fora aqueles que lhe tentavam empurrar. O roteirista Tullio Pinelli revelou há pouco que até a refilmagem de "Batman" chegaram a oferecer ao seu parceiro. E também uma adaptação de "A Divina Comédia". Fellini nem se deu ao trabalho de considerá-las. Teria ensandecido se apreciasse todas as sugestões que lhe submetiam. Poucas, aliás, o deixavam mais embaraçado do que esta: "Pense no público jovem".
Esta é uma das muitas novidades oferecidas pela ediçao de dezembro da "Cahiers du Cinéma", parcialmente dedicada ao cineasta. Há outras, tão ou mais curiosas, para não dizer surpreendentes, do que esta. Por exemplo: a paixão de Walt Disney por "A Estrada da Vida", a que assistiu inúmeras vezes. Quando Fellini e Giulietta Masina visitaram a Disneylândia, o pai de Mickey ainda estava vivo e fez questão de ciceroneá-los pessoalmente pelas melhores atrações do parque. Terminado o passeio, um colaborador de Disney sondou o pai de Gelsomina sobre a possibilidade de alterar o desfecho de "A Estrada da Vida", tornando-o menos dramático. Disney, quem diria, cogitou de transformar as andanças de Zampano e sua trupe em desenho animado.
A "Cahiers du Cinéma" publicou tambem um "script" radiofônico do cineasta, escrito em 1942 e transmitido em ondas curtas aos soldados italianos durante a guerra. Exumado dos arquivos da censura militar italiana, é um besteirol protagonizado por alguns dos personagens originalmente criados para o jornal humorístico "MarcAurelio". Em francês, perdeu a graça. Acompanhando a relíquia, uma seleta das declarações que Fellini prestou a vários programas da televisão romana nos últimos oito anos.
As de caráter evocativo são, naturalmente, as mais interessantes. Ele evoca Chaplin (cujos filmes costumavam passar em Rimini na época do Natal –"Carlitos era o nosso Papai Noel"); seus primeiros heróis dos quadrinhos (o vagabundo Happy Hooligan, Pafúncio e Marocas, Gato Félix, os Sobrinhos do Capitão –"os companheiros mais alegres, honestos e leais que as crianças podiam ter na Itália fascista"); a emoção de comprar aos sábados o "Corriere dei Picolli" com todos aqueles ídolos de papel; o fascínio pela América ("o país da fantasia e da imaginação desenfreada") destilada nas telas e nos gibis; o sentimento de decepção, incômodo e irritação que sentia ao final de cada filme ("era sinal de que a festa terminara e tínhamos de voltar pra casa, enfrentar o frio e os deveres da escola").
A essa traumática birra com a palavra "fim" pode-se atribuir a tendência de Fellini a recuperar e cruzar personagens que só aparentemente haviam sido abandonados. Para ele, não era justo dar fim a uma história. "É injusto com os espectadores e com os seus personagens". Por ele, sua obra seria um único e interminável filme, "um cortejo prolongado ao máximo". Pensando bem, foi.
Perguntaram ao roteirista Bernardino Zapponi, outro parceiro de Fellini, se alguma vez o cineasta, tão fascinado por sonhos e fixações infantis, manifestara interesse em ser psicanalisado. Nunca, respondeu Zapponi. E acrescentou: "Nenhum artista deve permitir que lhe devassem certos mecanismos interiores, sob pena de vê-los destruídos. Se um psicanalista tivesse curado Kafka, o que teria sido de sua obra?"
Não custa repetir: nós, seus espectadores, fomos o único psicanalista de Fellini; e a tela, o seu unico divã.
Talvez agora vocês queiram saber como Fellini reagia às propostas de pensar o público jovem. Era como se lhe dissessem: "Pense nos ciclistas! E nos vegetarianos!" Lixava-se para o público. "Quando faço um filme, infelizmente, não penso conscientemente, de maneira responsável, na platéia. Já basta o que tenho de pensar a respeito da história que tenho de contar e dos seus personagens".

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