São Paulo, quarta-feira, 12 de janeiro de 1994
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'Riverrão' de Rosa vem correr no palco

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Peça: Grande Sertão: Veredas
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (r. 1.º de Março, 66, tel. 021/216-0223)
Quando: estréia hoje; de quarta a domingo, às 19h; sábados, às 21h
Quanto: CR$ 700

Um travessão, uma travessia –entre os dois, uma torrente de palavras: o nosso riverrão caipira. Nonada, nonada, é tudo que de mais parecido com a literatura moderna logramos produzir. Adaptá-lo a outro meio? Toleima, dizem. Que seja, mas obrem. Com o outro riachão, o do irlandês, Joyce, tomaram risco –burros n'água. Com o nosso mesmo ensaiaram intimidades. A televisão nem primeira foi. Bruna Lombardi de Diadorim, Tony Ramos de Riobaldo, lembra? Glamour demasiado, globeleza. Cinema desfrutou na frente, anos 60, calamidade –cavalos pra lá, cavalos pra cá: os irmãos Santos Pereira cogitaram filme épico, ficaram no hípico.
Adaptar as veredas de Guimarães Rosa é muito perigoso.
Teatro, mais de um cismou. Moacyr Góes, o último, puxou o barco semana passada. Anos de lida pela janela, tristeza para José Mayer e Beth Goulart. Desistência de imposição: Eduardo Carvalho Filho, neto de Guimarães Rosa, não cede "Grande Sertão: Veredas" por menos de US$ 40 mil. Ventura melhor teve o grupo Ponto de Partida, de Barbacena: o Centro Cultural Banco do Brasil, do Rio, deu apreço à feitura deles e afrouxou US$ 70 mil, quinhão bastante para os direitos autorais e todas as tarefas, graúdas e miúdas, da encenação que hoje arriba ao palco, com sete mulheres e três homens.
Veja só: tem mais Diadorins que Riobaldos na trupe de Barbacena. Mas só uma delas (Cláudia Valle) cabe no corpo da paixão culpada de Riobaldo, o vaqueiro letrado –em cena bisado por Lido Loschi, seu retrato quando jovem e passado, e Nelson Xavier, seu retrato quando velho e presente. Nelson? Não concerne. Regina Bertola, artífice da adaptação e da montagem, matriarca do brioso e pertinaz grupo teatral mineiro, obstinou-se por alguém de fora, maturado e de molde adequado ao capiau contador de causos, de memória caudalosa, como a de um rio baldo de ouvinte. E Nelson calhou. Perfeito. Mais que perfeito.
Memória do demo. Tudo, tudo, na cachola. Tudo que Bertola aproveitou das 460 páginas do Rosa. E do máximo ela tirou proveito: a essência e também os acessórios de necessidade. Prosa comprida, abundante, vivente, fragmentada. E que só agora, adrede modulada por quem sabe o jeito jeca, caipira, matuto de falar, compreendi e saboreei em sua inteireza. Verdade se diga: as bizarrias de "Grande Sertão: Veredas" não brotaram para os olhos, mas para os ouvidos. Da oralidade veio, à oralidade acaba de voltar. Os puristas tolerem, isto sim é respeito ao original –ou às raizes.
Experimente: uma coisa é ler o que Riobaldo diz com letra, outra o que Nelson rediz com a voz, pitando o seu cigarro de palha, entre uma e outra escaramuça, a título de esclarecer as pelejas sertanejas que de roldão arrastam aquele que ele foi, aquela que ele amou, e mais Zé Bebelo, Hermógenes, Ricardão, Marcelino Pampa etc. Duas horas e meia é até pouco para tantos prazeres. No plural, isso mesmo. Pois agrados sobram para os olhos, por engenho do artista plástico Alvaro Apocalypse, que mais merecia se chamar Gênese tal o seu pendor para criar cenários, figurinos, adereços, bonecos e trapizongas roceiras. Alma agreste, artesão vitalino: com retalhos e palha, corda e couro, galhos e bambus, Alvaro modelou elmos, escudos e mochilas de parecença medieval. Não se espante: guerreiros míticos vão ao mesmo alfaiate.
Grande sertão, grande teatro. E sobretudo grande ator. Em Nelson Xavier Riobaldo Tatarana encontrou o seu avatar de carne e osso.

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