São Paulo, sexta-feira, 14 de janeiro de 1994
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Caça às bruxas

RICARDO FIUZA

Muito justas são as razões do inconsciente coletivo brasileiro em seu desejo de promover uma faxina moral na atividade pública neste país. A honestidade no trato com os recursos é a primeira obrigação das elites dirigentes. O cidadão tem todo o direito de cobrar o máximo de transparência na aplicação do erário em obras que sejam prioritárias para a sociedade como um todo, considerando-se o desejo da maioria, representada democraticamente, e nunca o interesse específico de pessoas ou de grupos.
Nesse sentido, a Comissão Parlamentar de Inquérito em funcionamento no Congresso Nacional cumpre papel histórico. Mais do que passar o Brasil a limpo –uma expressão abrangente demais no tempo e mesmo no espaço–, é necessário, realmente, limpar o Brasil, promover uma faxina moral de alto a baixo em nossas instituições. Tal faxina implica sobretudo pôr fim à impunidade, pois nenhuma democracia será sólida se os culpados não forem punidos. Da mesma forma, nenhum regime legítimo de representação popular resiste à condenação de inocentes.
A CPI é uma oportunidade de ouro de fortalecer nossa própria democracia. Para tanto, precisa cumprir esse duplo papel. Num ambiente de descrédito geral e de desconfiança em tudo e em todos, a comissão reúne condições para, a depender do resultado final de seus trabalhos, acabar com as fraudes e, assim, reacender a chama da esperança na sociedade brasileira.
Ressaltados o espírito democrático e a serenidade da condução dos trabalhos pela Mesa, presidida pelo senador Jarbas Passarinho, é lícito advertir para os perigos representados pela manipulação política da investigação empreendida com muito esforço pelos membros da CPI. É justo que a referida comissão cumpra por inteiro seu papel de investigar, tornando transparentes as contabilidades pessoais ou empresariais dos parlamentares postos sob suspeita. Mas é muito perigoso que o veneno da crença ideológica ou um clima incontrolável de caça às bruxas a transforme numa espécie de tribunal popular revolucionário.
A CPI do Orçamento não pode se transformar numa nova Convenção (o tribunal discricionário que implantou o terror durante a Revolução Francesa). Pois não se trata apenas da reputação e da carreira política de um ou de dezenas de deputados e senadores, mas da própria utilização correta da missão de recuperar a esperança nacional. Se a comissão deixar culpados por punir e condenar inocentes, estará prestando um desserviço à causa da esperança e pondo mais lenha na fogueira do descrédito, onde o espírito democrático tem sido, sempre, imolado.
Nesse sentido, convém advertir para a transformação do trabalho de investigação parlamentar numa espécie de circo montado sob o concreto armado do Congresso Nacional. Nesse circo, há arautos que se consideram repositórios exclusivos da moralidade, mas cuja própria atuação, na vida privada ou pública, jamais resistiria à exposição que, na condição de inquisidores, estão exigindo dos acusados.
Há personalidade cuja teatralidade e anseio de passarelas notórios são mais apropriados para o picadeiro do que para o plenário. Como existem figuras a cuja patologia mental, semelhante à da mulher barbada, soma-se um desejo de notoriedade que atinge as raias da obsessão.
Tais profissionais da bruxaria revolucionária misturam, com reconhecida habilidade, desejo de vingança, ódios pessoais, frustrações e diferenças ideológicas num caldo de cultura fétido, no qual sacrificam a verdade dos fatos em benefício de versões adjetivas demais e muito pouco apoiadas em substantivos.
Não se deve confundir todo o trabalho da CPI com a confusão armada por tais profissionais do circo, mas há o risco da contaminação.
Enfrento uma possibilidade nova: a de ter meu paciente trabalho de levantamento de toda a minha vida contábil, desde os 17 anos de idade, soterrado sob o entulho de adjetivos dirigidos contra minha honra, sem direito a uma defesa decente. Sou um homem de luta –e, por isso mesmo, tenho tido meu direito de defesa cerceado pelo preconceito ideológico– e não pretendo me deixar calar sob a ameaça ululante de todos quantos querem transformar essa CPI histórica num tribunal de julgamento meramente ideológico.
Por isso mesmo, utilizo este espaço aberto pela Folha para fazer um desafio. Estou disposto a levar toda a documentação coligida nestes dias de paciente e tenso trabalho para debater com quem quer que seja, diante de quaisquer microfones ou câmeras, a respeito de qualquer negócio que tenha feito, ao longo de toda a minha vida.
Quero saber que acusações pesam contra mim. E aceitarei, democraticamente, o resultado de um julgamento justo em que seja ouvido. Pois creio que o linchamento moral e sumário, ao estilo stalinista, não convém a nenhum democrata que se preze como ser humano ou como homem público. O desafio está lançado.

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