São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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1894-1929: os tempos da infância

SÍLVIO LANCELLOTTI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

1894-1929: os tempos da inocência
Dez anos antes de abolir a escravatura no Brasil, a princesa Isabel autorizou a realização da primeira exibição do novíssimo esporte do futebol no país. Aconteceu em 1878. Havia aportado no Rio de Janeiro um brigue britânico, o Criméia. Na sua folga, os marinheiros desceram de seu barco, uma redonda à disposição, e procuraram nos arredores da praia da Glória um relvado que lhes permitisse o prazer da brincadeira. Encontraram, entre as ruas do Roso e do Paissandu. O palco, todavia, ficava exatamente à frente do palácio da princesa. Foi preciso que ela, pessoalmente, permitisse a doce pelada.
Oficialmente, porém, o futebol só nasceu no Brasil no inverno de 1894, quando um certo Charles Miller desembarcou em Santos, vindo de Southampton, com duas bolas de couro fabricadas pela empresa Frank Sugg, da n.º 32, Lord Street, Liverpool, dentro da bagagem. Miller era um paulistano, filho de ingleses muito ricos, que em 1884 havia viajado à pátria ancestral para estudar na Bennister Court School. Lá se apaixonou pelo "football", lá se tornou uma atacante de prestígio.
Os seus avós maternos, Henry e Harriet-Mathilda Rudge Fox, detinham várias propriedades na descampada zona leste de São Paulo. Moravam perto da atual estação do Brás. Naqueles entornos, então batizados de "Dulley Sites", Miller construiu o primeiro campo de futebol do país. Nem um marco na região existe. De todo modo, pode-se dizer que ficava na Várzea do Carmo, entre a rua Santa Rosa e a rua do Gasômetro. Dono das bolas, Miller escolheu os parceiros da peleja inicial, amigos britânicos e descendentes, funcionários da companhia de gás, do Banco de Londres e da São Paulo Railway.
Naqueles primórdios, o futebol era coisa de rapazes ricos, que até mesmo ostentavam gravatas de seda nos seus uniformes. Não se combatia debaixo de chuva para que os penteados gomalinados não se conspurcassem e as camisas não se desbotassem. Miller também introduziu o futebol entre os esportes habituais do São Paulo Athletic Club, que se divertia basicamente com o cricket, o carteado e os bilhares.
Unico, e por isso mesmo petulante, Miller batizou de "Charles" um lance que só ele conseguia fazer, uma espécie de drible, a pelota revirada com a sola da chuteira, o "elástico" de Rivelino quase um século depois. Hoje, o pioneiro é estátua e nome de praça, à frente do Pacaembu. As bolas inaugurais? Conta a lenda que se afogaram num riacho acostumado a transbordar bastante, o Tamanduateí.

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