São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Amigo comenta cotidiano de Oswaldo Porchat

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE
DO CONSELHO EDITORIAL

Lembro-me como se fosse hoje. Aconteceu na Rue Gay Lussac. Fins de 1958. Eu sabia que outra vez eu iria me ressentir. Mas a alegria de vê-lo suplantou meu orgulho. Desavergonhadamente atravessei a Gay Lussac e gritei seu nome. Não deu outra. Olhou-me com aquele olhar de filósofo e polidamente me perguntou. "De onde é mesmo que nos conhecemos?'e "Fomos colegas de escola, no Colégio Estadual F.D. Roosevelt. Lembra-se seu...?" O ar de paspalho filosofal continuava. "E depois nos reencontramos quando você, o melhor aluno de matemática da escola, surpreendentemente fazia concurso para professor de Latim". A basbaquice continuava. "E depois, um pouco mais tarde, eu era presidente do Centro Acadêmico S. Dumont do ITA e você era presidente do Grêmio da Maria Antônio, e o Massi e o Chico Roberto eram presidente e vice do Grêmio da PUCC, e tinhamos a fórmula para salvar o mundo". Só aí que, lentamente, um brilho de compreensão apareceu-lhe nos olhos. "Ah, você é brasileiro". Mas aos poucos ele me reconheceu. "O que você está fazendo em Paris?", perguntei. "Aristóteles", disse ele. E fim de papo. "Preciso ir para a aula". Despedimos e saímos juntos na mesma direção. Aquela situação incômoda em que o outro parece nos acompanhar. Apertar o passo é indelicado. Foi assim que um pouco a contragosto caminhamos lado a lado, pela Rue Lhomond e Rue D'Ulm, uns cinco quarteirões da "Ecole Normale Sup." onde nos despedimos novamente, aliviados, enfim. E entramos juntos para nossa escola.
Pois bem, passamos vários anos juntos em Paris. Éramos vizinhos, íamos a teatro, concertos, férias juntos. Discutiamos política e literatura. Mas ele veio antes para o Brasil, e quando novamente aqui o encontrei o episódio da Rue Gay Lussac se repetiu. Depois estivemos juntos nos EUA e mais tarde ele veio, cansado da USP e da História da Filosofia, montar o Centro de Lógica da Unicamp. Vemo-nos com muita frequência, mas tomo muito cuidado. Se fico mais que um mês sem ver o Porchat telefono antes. "Sou aquele da Rue Gay Lussac..."
Mas me conformo de minhas desventuras com o Porchat com a lembrança de um outro episódio. Chovia a cântaros. Liga o Porchat, dizendo que não encontrava um táxi. Pedi ao Mário, nosso amigo, para ir buscá-lo. Vinte minutos depois entram os dois um pouco molhados. Porchat agradece efusivamente a generosidade do Mário e passa a cumprimentar os dez ou 12 convidados para o almoço. Dá a volta completa e com sua costumeira polidez e circunspecção chega ao Mário. "Mário, há quanto tempo que não te vejo! Que imenso prazer". E todo mundo sabe que ele não está brincando.
Bom, quem iria querer casar com um filósofo desses. Pois em Paris encontrou Yeda, por coincidência cunhada do Massi, nosso velho amigo. Deu-me um trabalho daqueles, mas casaram-se. Precisou toda a engenharia que aprendi no ITA. A Yeda é uma santa. Em uma festa, ela já ia se irritando. Porchat estava abraçado carinhosamente uma atônita Marilena Chaui. O marido já começava a inquietar-se. Yeda chega perto de Porchat. "Benzinho", diz ele, "me pega mais um whiskey, mas, ué, você não está aqui?" Só então Marilena entendeu o que estava acontecendo. Porchat demorou um pouco mais. Yeda tem muita paciência.
Sua única filha, Patrícia, também, de uma feita livrou uma outra amiga no supermercado de um prolongado sermão. Ficou muito envergonhada. Mas o pai achou natural. "Pensei que era você que estava comprando todo aquele chocolate", explicou. A menina desconhecida é que não entendeu a razão de tanta dialética.
Depois do latim e do grupo, veio a História da Filosofia, com Aristóteles no centro. Depois a Lógica e a Epistemologia. Muitas brigas com o amigo dileto, o Giannotti, e agora nestes últimos dez ou 15 anos uma filosofia muito pessoal, uma espécie de ceticismo do cotidiano. Sei que ele não vai gostar desta minha última provocação. Durante quase toda sua vida foi um filósofo absoluto. Debochava daqueles que, como Bertrand Russel, se degradara em "pensador". Pois bem, Porchat amadureceu. Este seu último livro é obra daquela espécie rara que antigamente chamávamos de pensador.

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