São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Anarquia sexual caracteriza fim de século

JOANNA K. WEINBERG
DO "THE NEW YORK TIMES BOOK REVIEW"

A cultura ocidental parece fixada no milênio que se aproxima. Assim, parece apropriado comparar o fim deste século com o fim do século passado. Elaine Showalter mostra como uma visão cataclísmica –a "anarquia sexual", o colapso das normas sexuais e de comportamento– marca o fim dos dois séculos. O fin-de-siècle, diz Showalter, é carregado de "–metáforas de morte e renascimento que projetamos nas décadas e anos finais de um século".
Showalter localiza engenhosamente similaridades nas agendas e debates sócio-sexuais de ambas as eras através da arte, da literatura e do cinema; a liberdade sexual e a doença; o movimento das mulheres e a reação antifeminista; liberdade sexual e homofobia. Showalter, catedrática do Departamento de Inglês da Universidade de Princeton, mostra bastante segurança na documentação das crises do último fim de século –lliberdade sexual, a morte de George Eliot, as transgressões de Oscar Wilde e os direitos femininos.
A sociedade não era generosa com as mulheres solteiras no século 19; a reação contra o feminismo, e as continuadas restrições sociais, não as faziam benvindas na sociedade educada. As mulheres que desafiavam as normas –adúlteras, mães solteiras, feministas– recebiam sua punição. A filha de Marx, Eleanor, se suicidou, incapaz de resolver o conflito entre o amor e o intelecto. Showalter sugere que pouco mudou.
A homossexualidade era também tabu para o século 19. A Inglaterra decretou que atos homossexuais eram crime em 1885 –(embora não o lesbianismo –sua existência escapou aos legisladores do sexo masculino), mas os casos evidentes de Oscar Wilde tantalizaram o público. A cultura estava obcecada com os órgãoes sexuais femininos, escreve Showalter: "Enquanto os novelistas... descrevem suas viagens... como expedições sexuais a um corpo feminino primordial, os médicos descrevem suas invasões do corpo feminino como buscas aventurosas de tesouros e poder." A fascinação com raças "inferiores" –Africa e India coloniais– era também obsessão sexual mal disfarçada, como na novela de Conrad, "O Coração das Trevas". Estas linhas também percorrem filmes sobre o fim do século 19 como "Drácula" e mitos de moralidade modernos como "Atração Fatal".
Showalter encontra esperanças na discussão pública da Aids que ocorre hoje, em contraste com o ocultamento da epidemia de sífilis no século 19. Ela enxerga a sociedade atravessando as "dores do nascimento" de uma nova democracia sexual (seu otimismo ignora tendências conservadoras, como a Corte Suprema ter aprovado em 1986 uma lei da Geórgia, criminalizando a conduta homossexual privada).
A análise de Showalter da obsessão do fim do século 19 com –e repressão do– sexo é aguda, e sua discussão contemporânea tem momentos brilhantes. Seu relato de uma conferência no centenário da morte de George Eliot é um tesouro: "Germaine Greer chegou com uma grande bolsa de tapeçaria cheia de tricô e fez um enorme barulho com as agulhas... mexendo nos papéis dos homens. Quase houve troca de socos quando um jovem de barba se ergueu e chamou uma das conferencistas de 'prostitutazinha miserável'. A conferencista começou a chorar, mas antes que outros professores de barba pudessem atingi-lo, o acusador sumiu na noite."
No entanto, há deslizes sérios. Showalter está irremediavelmente comprometida com o fim-de-século como símbolo, a despeito de evidências em contrário. As tendências sugerem um "continuum", não idéias velhas de um século renascidas. Showalter minimiza o movimento sufragista em 1919 e o movimento feminista dos anos 60, e ignora a anarquia sexual dos anos 20 e 50.
Mas há uma omissão mais séria. Embora a discussão de Showalter da homossexualidade e da homofobia seja excelente, seu retrato da anarquia sexual do movimento feminino é surpreendentemente fraco. Ela ignora a ascensão da política repressiva de reprodução –não apenas a batalha sobre o aborto, mas leis de custódia cada vez mais repressivas e novos esforços de controle de estilos de vida, como acusações de abuso de crianças contra usuárias de drogas grávidas. "Se o "Rock Horror Picture Show" é anarquia sexual, que dizer de "Kramer X Kramer"?
Showwalter exagera sua visão de uma nova era do sexo e da política dos gêneros. O aborto e e os direitos de reprodução são as palavras de ordem políticas de 1990; assistimos também a ascensão da "nova mulher tradicional", no cinema e na propaganda. "Anarquia Sexual" é um livro importante, mas seria trágico se as imagens do fim-de-século mascarassem perigos políticos bastante reais. As "dores do nascimento" de uma democracia sexual ainda podem resultar num natimorto.

A OBRA
Anarquia Sexual - , de Elaine Showalter. Tradução de Waldélia Barcellos. Ensaio sobre costumes sexuais e decadência no fim do século 19 e do século 20. Editora Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5.º andar, Rio de Janeiro, CEP 2011-040, tel. 021 507-2000, fax 021 507-2244). 300 págs. CR$ 6.846

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