São Paulo, quinta-feira, 20 de janeiro de 1994
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Travesti brasileiro vira livro na Itália

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

O travesti brasileiro Fernanda (Fernando) Farias de Albuquerque lança hoje na Itália a sua biografia, intitulada "Princesa". O livro está sendo publicado pela editora Sensibili alle Foglie (Sensíveis às Folhas), dirigida por Renato Curcio, o fundador da organização terrorista Brigadas Vermelhas, responsável por centenas de atentados e mortes nos anos 70.
O travesti Fernanda e o terrorista Curcio se conheceram na prisão de Rebibbia, em Roma. A situação lembra em parte a história dos dois personagens centrais do mais famoso romance do escritor argentino Manuel Puig (1932-1990), "O Beijo da Mulher Aranha", no qual o preso político Valentim e o homossexual Molina dividem uma mesma cela e trocam experiências.
Curcio cumpre pena de mais de 30 anos de detenção por suas atividades terroristas. Está preso desde 1975. Fernanda foi condenada em 1990 a 6 anos por tentativa de homicídio. Deu três facadas na dona da pensão onde morava.
Fernanda e Curcio falaram à Folha, por telefone, na última segunda-feira. Fernanda conta que, incompreendida pelos presos comuns, por sua condição de travesti, acabou conhecendo e fazendo amizade com presos políticos encarcerados em Rebibbia.
Em abril de 1994, o fundador das Brigadas Vermelhas ganhou na Justiça o direito de viver em semiliberdade (diariamente, deixa Rebbibia às 7h30 e retorna às 22h30). Nesse regime, passou a trabalhar com afinco em sua editora, uma cooperativa que havia sido fundada em 1990 dentro da prisão.
Trabalhando como editor, Curcio ofereceu emprego a Fernanda, como secretária da editora. A proposta possibilitou que a Justiça estendesse ao travesti brasileiro o benefício da semiliberdade.
Incentivada pelos presos políticos, Fernanda começou a escrever a sua biografia. O resultado final, obtido com a ajuda de um outro preso, Maurizio Jannelli, e do próprio Curcio, chega hoje às livrarias italianas. "É uma enorme contribuição que esperamos dar à cultura italiana sobre os problemas da transexualidade", diz Curcio.
Fernanda é de Campina Grande, na Paraíba. Tem 30 anos e é travesti desde os 18. Como milhares de travestis brasileiros, embarcou nos anos 80 para a Europa. Passou por Portugal e Espanha antes de se estabelecer na Itália.
Começou a se prostituir em Roma em 1988. Dois anos depois, em abril de 1990, ocorreu o que chama de "tragédia": "A dona da pensão onde eu morava, se aproveitando do fato de eu estar ilegalmente na Itália, pegou US$ 4 mil de mim."
Fernanda conta que tiveram algumas discussões em seguida ao episódio. Até o dia em que o travesti atacou a dona da pensão com uma faca. "Para minha sorte, ela está bem, sobreviveu", diz. Caso tivesse matado a italiana, o travesti brasileiro poderia pegar uma condenação de até 30 anos ou mais.
Não bastasse a primeira "tragédia", como centenas de travestis brasileiros na Itália, Fernanda conheceu a heroína, ficou viciada e contraiu o vírus da Aids. "Tive contato muito grande com heroína, justamente com pessoas que eram amigas e que hoje estão mortas." O travesti diz que está bem de saúde e que não tem problemas relacionados com a Aids.
Renato Curcio e os demais presos políticos que conheceu na prisão, são considerados quase como heróis por Fernanda. "Eles foram os únicos que entenderam a minha situação", diz. Com 18 meses de prisão em regime semiaberto ainda por cumprir, Fernanda aguarda a liberdade definitiva para procurar a mãe, em Campina Grande, e contar a ela toda a sua aventura.
Para Renato Curcio, a história da "princesa" Fernanda se encaixa perfeitamente na proposta de sua editora: "Essa é uma editora nascida do encontro de muitas pessoas interessadas, há anos, pelas dificuldades de viver". Palavras do fundador de um dos grupos terroristas mais violentos do mundo.

"Princesa"(128 págs), custa na Itália 18.000 liras (cerca de CR$ 4.500). A Livraria Italiana (011) 259-8915 e a Livraria Cultura (011) 285-4033, importam livros de Itália. Demora de 60 a 90 dias.

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