São Paulo, quinta-feira, 20 de janeiro de 1994
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Altman faz painel alegórico dos EUA

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Na sua busca pelo mito americano, Robert Altman acabou tomando dois caminhos: o da paródia e o do panorama alegórico. "Cerimônia de Casamento" ("A Wedding", 1978) é representativo da segunda opção, na mesma linhagem de "O Jogador" (1992) e do excelente "Short Cuts", em cartaz nos EUA.
Os altos e baixos da carreira de Altman podem ser em grande parte associados a essas duas opções narrativas. Há enormes problemas na paródia histérica e iconoclasta dos mitos americanos em "James Dean-O Mito Sobrevive" ou em "Louco de Amor", baseado na peça de Sam Shepard. Tanto um como o outro, dominados pela forma teatral, sofrem de uma claustrofobia melancólica ao tentarem tratar do mito (o western, a mitologia hollywoodiana etc. –Altman também dirigiu vários episódios de televisão, como "Bonanza" e "Alfred Hitchcock Presents") de uma forma pontual. Os efeitos são radicalmente opostos quando o diretor faz a opção pelos grandes afrescos, pelos painéis de personagens, pelos grandes espaços.
"Cerimônia de Casamento" faz parte dessa tentativa de parodiar os mitos americanos pelo coletivo, por uma galeria de tipos, uma representação mais complexa e indireta da sociedade americana, em vez da paródia direta e explícita de personagens como James Dean e Buffalo Bill. É uma opção mais narrativa e literária, em oposição à sedução da alegoria teatral que volta e meia assombra o diretor com consequências nem sempre felizes.
O caráter literário dessa opção de usar um panorama de tipos para narrar os EUA torna-se evidente com a adaptação inteligente que o diretor fez dos contos de Raymond Carver em "Short Cuts", cruzando histórias e personagens díspares num mosaico da sociedade americana. "Cerimônia de Casamento" é menos amplo, mostra um painel mais restrito, focalizando os tipos de apenas duas famílias reunidas na casa dos pais do noivo após o casamento religioso, para chegar à representação de uma certa "loucura" americana.
Os personagens de "Cerimônia de Casamento" são tipos rodrigueanos que passaram por um processo de americanização. São mais ingênuos e a tragédia, quando os atinge, parece menos drástica, menos definitiva. São tipos que minimizam os dilemas morais e psicológicos com um pragmatismo em geral bem-humorado. "Em Cerimônia de Casamento", como em "O Jogador", o trágico é submetido ao cômico e se encerra no patético.
Altman cria personagens que se encaixariam perfeitamente no universo rodrigueano: a irmã da noiva, imbecilizada, que revela ao noivo estar grávida dele; a mãe da noiva, que é seduzida e se apaixona por um tio do noivo; ou a própria noiva, que pega o noivo bêbado e inconsciente no chuveiro com um amigo gay. O toque americano permite que nada tenha consequência. Orientados pela prática, esses personagens aprendem a lidar com tudo, mesmo o mais inesperado, sob o mundo das aparências.
As aparências são as principais vítimas do sarcasmo de Altman, desde as "peruas" que discutem a cor de seus cabelos até a noiva, que usa aparelho, escovando os dentes alegre diante do espelho. O humor de Altman vai na direção das convenções de uma sociedade que, tendo que aceitar tudo sob as aparências, acaba perpetuando uma vasta rede de hipocrisia. "Pertencemos a um grupo de caridade. Fazemos um número de dança. Dançamos em hospitais e manicômios", diz uma das tias do noivo, uma senhora, para as colegas "peruas".
Há uma boa dose de realismo também. Os personagens de "Cerimônia de Casamento" parecem saídos das páginas de "recém-casados" do "The New York Times", uma das seções mais provincianas da imprensa mundial e de maior leitura num jornal que vende a imagem de um dos mais cosmopolitas do mundo.

Vídeo: Cerimônia de Casamento
Diretor: Robert Altman
Elenco: Carol Burnett, Mia Farrow, Lilian Gish, Vittorio Gassman
Distribuidora: Abril Vídeo

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