São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 1994
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José Carlos diz que a corrupção "gruda"

INÁCIO MUZZI
DO PAINEL, EM BRASÍLIA

Nos seus 114 dias de isolamento carcerário, o economista José Carlos Alves dos Santos dedicou-se a três tarefas: dissecar o esquema de corrupção da Comissão do Orçamento, tentar provar a sua inocência no sequestro e morte de sua mulher, Ana Elizabeth Lofrano, e, sobretudo, compreender a trajetória de sua vida nos últimos quatro anos.
Em 1989 ele era um funcionário público considerado competente, honesto e bem remunerado. Morava com a família numa casa ampla e agradável, construída sem um único tostão de dinheiro sujo. Aspirava a uma aposentadoria tranquila e honrada. Hoje, aguarda julgamento numa cela de 5 metros por 4 metros. Dependendo da pena, pode terminar seus dias sem recuperar a liberdade. A família se desfez, o dinheiro acabou e seu nome rola na lama, juntamente com os daqueles que denunciou por corrupção.
Numa entrevista de três horas nas dependências da Polícia Federal, José Carlos contou à Folha os seus passos rumo à corrupção. Falou do ambiente convidativo do Congresso –que "gruda" a corrupção nas pessoas–, da isca das primeiras propinas, da vida tranquila proporcionada pelas boladas e da vontade de voltar atrás, desfazer tudo, ser um homem simples, "sem esta vaidade sofrida de ter participado, de algum modo, da história do país".
A seguir, os principais trechos da entrevista.
*
Folha - Como o senhor se aproximou do Orçamento da União?
José Carlos Alves dos Santos - Foi acidental. Entrei para o Senado e como estudava economia, fui indicado, em 1968, para integrar a Subsecretaria de Orçamento do Senado. Em 1985 fui promovido a diretor de Orçamento do Senado e em 1988, com o Congresso podendo interferir no Orçamento, meu cargo ficou importante.
Folha - Quando o senhor recebeu a primeira pressão para manipular o Orçamento?
José Carlos - Lembro-me do episódio que me levou a gravar uma conversa telefônica de João Alves (sem partido-BA), em 1984. Ele queria alterar um parecer para dar mais ênfase à rejeição de uma emenda. Era uma coisa sem importância. Para você ter uma idéia de minha pureza na época, não aceitei a alteração.
Folha - Como o senhor conheceu João Alves?
José Carlos - Foi em 1983. Entre aquele ano e 1988, ele e o senador Saldanha Derzi (PRN-MS) dominaram a Comissão de Orçamento.
Folha - Ele foi o responsável pelo seu envolvimento com a corrupção no Orçamento?
José Carlos - Foi. A partir de 1989, quando ele assumiu a relatoria do anexo do Ministério da Ação Social, no Orçamento para 1990, passou a me envolver. Sobrecarregou-me de trabalho. Sugou-me. Pedia-me que olhasse as emendas ao Orçamento, que lançasse valores determinados por ele, por fim, que fizesse o parecer, que depois ele rechearia de bestialogias. Como ele escrevia mal!
Folha - Neste momento o senhor já recebia dinheiro para manipular o Orçamento?
José Carlos - Não. Até meados de 1990 não recebi nenhum dinheiro. Era só trabalho.
Folha - Quando o senhor recebeu o primeiro pagamento?
José Carlos - Não me lembro bem. Talvez em meados de 1990, quando João Alves se preparava para relatar o Orçamento de 1991. Ele me chamou à sua casa e entregou-me um envelope pardo com um volume dentro. Disse: "É um presente pelo seu aniversário". Embora eu faça aniversário em 9 de outubro, não estranhei, porque o meu registro de nascimento dá a data de 19 de julho. Um tipo de erro muito comum, antigamente. Eu abri aquele envelope e vi um bolo de notas. Eram US$ 20 mil.
Folha - O senhor não pensou em recusar?
José Carlos - Não. É aquele negócio. Ele gostava de se dizer muito rico. Eu trabalhava na casa dele feito um louco.
Folha - Quando se deu o segundo pagamento?
José Carlos - Meses depois. Foi do mesmo valor. Disse que era um pagamento por eu estar trabalhando demais. O terceiro pagamento veio logo em seguida. Eram US$ 30 mil. Sempre dizia que era dinheiro dele. Nunca vinculou aquilo a empreiteiras. Eu me enganava e só muito depois fui tomar consciência de que aquilo era um "calaboca". "Calaboca" pelas reuniões que eu via, pelas relações de empreiteiras beneficiadas que passavam pelas minhas mãos.
Folha - E quando vieram as boladas?
José Carlos - Em 1991. Antes de eu ser indicado para chefiar o Departamento de Orçamento da União (DOU) recebi uma bolada, que não me lembro se foi de US$ 200 mil ou US$ 300 mil. Foi o meu ponto sem volta. Depois disto, não parou mais de entrar. Uma vez o volume era tanto que não coube na minha pasta. A Beth (Ana Elizabeth Lofrano, mulher de José Carlos) ficou assustada. Eu lhe disse que era um pagamento de João Alves pelos três anos de trabalho da gente. Que não se assustasse, que eu não havia assinado nada e que também não tinha poder para interferir em nada. Ela se tranquilizou.
Folha - O DOU era uma posição estratégica arranjada pelo João Alves para o senhor ajudá-lo na outra ponta da linha?
José Carlos - Não. João Alves não teve nenhuma ingerência na minha escolha para o DOU, mas ficou muito alegre quando soube. Uma bobagem, já que eu não tinha autonomia para mexer no Orçamento. A ajuda que prestei a João Alves foi na elaboração da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 1992, cujo relatório era de responsabilidade de Messias Góis (PFL-SE), mas foi feito por mim, sob inspiração de João Alves. Ajudei o deputado também durante os meses em que atuou como relator do Orçamento e, depois, enquanto ficou como sombra de Fiuza, que assumiu a relatoria em outubro de 92. Naquela época eu recebi a última bolada, se eu não me engano, US$ 100 mil.
Folha - Mas não deu para desconfiar que aquele dinheiro era propina?
José Carlos - No começo não. Agora, quando eu comecei a receber boladas, aí deu para desconfiar. E havia o clima de reuniões suspeitas, conversas em código. Aquilo começou a me incomodar, mas tinha também o seu lado bom.
Folha - O senhor nunca pensou em deixar o esquema?
José Carlos - Eu me enganava. Quando pensava nisto, me perguntava: por que sair? Não consegui uma resposta convincente. E pensava: se sair serei ameaçado. E fui me conformando. Este negócio gruda na gente e o ambiente do Congresso ajuda. Um ambiente em que todo mundo, indiretamente, está soltando coisas. Fazendo as ligações, você vai se dar conta do que significam. Compra de fazendas, viagens, mulheres, tudo ligado a um esquema de tráfico de influência.
Folha - E o que o motivou a denunciar o esquema?
José Carlos - Foi uma catarse. Primeiro a Beth desapareceu e fiquei desesperado. Depois teve a minha prisão e todas aquelas acusações inventadas, de que eu era traficante, doleiro, falsário, proxeneta. Se não fosse isto eu não teria falado.
Folha - O senhor se arrepende de ter feito a denúncia?
José Carlos - É difícil de dizer. Aquilo foi um momento. Hoje, sem dinheiro, sem amigos, sem testemunhas de defesa, penso que talvez não o fizesse. Alguns daqueles parlamentares poderiam depor a meu favor.
Folha - Algum outro parlamentar deu dinheiro ao senhor?
José Carlos - Não. Gente como o Cid Carvalho (PMDB-MA) e Genebaldo Correia (PMDB-BA) apenas insinuava que eu devia ficar quieto. Não comentar "assuntos da Comissão". Tomar cuidado com os documentos que eu transportava. Cid Carvalho me dizia que eu só era diretor de Orçamento porque era de confiança. João Alves e Ricardo Fiuza (PFL-PE) gostavam de dar conselhos sobre a vida sexual. Diziam que eu não devia ter amante fixa, ter filhos fora do casamento. Que isto podia ser perigoso. João Alves gostava de fazer alusões ao perigo. Dizia: "Pode vir gente da Bahia para sumir com a pessoa".
Folha - A vida do senhor se transformou em que, com todo este dinheiro?
José Carlos - Este dinheiro incomodava, mas a gente o usava. Nós viajamos para os Estados Unidos e Europa na primeira classe, ficamos em hotéis cinco estrelas. Fizemos compras no exterior. A Beth começou a usar roupas melhores. A vida ficou bem mais folgada. Hoje, porém, não quero este dinheiro por nada. Se a Justiça quiser devolvê-lo, vou entregá-lo à campanha contra a fome.
Folha - Se o senhor pudesse voltar no tempo, o que faria para escapar desta arapuca?
José Carlos - Eu evitaria me aproximar do Orçamento. Fugiria do que pudesse provocar minha vaidade. Fui vítima dela. Ficava envaidecido de ser procurado por gente importante, de ter o meu trabalho valorizado. Agarrei-me ao cargo e entrei no esquema.

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