São Paulo, quinta-feira, 27 de janeiro de 1994
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O pluriverso político

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Carl Schmitt, em seu livro "O Conceito do Político", no qual define ser a ciência política o "estudo da oposição entre o amigo e o inimigo", substitui o vocábulo "universo" por "pluriverso", pois a luta pelo poder não cria uma unidade, mas uma pluralidade de interesses, disfarçados de ideais, a ser usada ou para manutenção ou para conquista do governo.
Os ideais políticos são sempre menores que os interesses dos grupos que ambicionam controlar o Estado e o homem, que o busca, torna-se, no dizer de Montesquieu, pouco confiável, razão pela qual somente a lei poderá enquadrá-lo dentro de uma separação de funções, em que o "poder controle o próprio poder".
Tais lembranças das duas lições de cientistas do direito e da política são perfeitamente aplicáveis à luta aberta pelo poder que se trava entre os dois grupos que o ambicionam, embora cada um deles esteja multidividido, ou seja, os do que exaltam Lula e aqueles que o execram.
No momento, a tática de ambos, objetivando a Presidência da República, tem na frase do governante romano "Delenda Cartago" sua inspiração. Vale dizer, o inimigo deve ser destruído. Não apenas vencido, mas destruído.
Principais inspiradores da "CPI de Collor", que a rigor era de "PC Farias", e da "CPI do Orçamento", os seguidores de Lula anteciparam, à própria conclusão dos trabalhos, seus pareceres, procurando atingir todos os adversários potenciais à caminhada de seu líder para o Palácio do Planalto. Aproveitaram-se, com maestria, da profunda desilusão que a "Nova República" causou, em nível do governo, quanto aos ideais democráticos, de 1985 até hoje, principalmente no que concerne à ética na política.
Por outro lado, seus adversários, aproveitando-se também dos problemas corporativos, da utilização de financiamento indireto das campanhas eleitorais pelos sindicatos e centrais sindicais e da execução pelas costas de líder francamente opositor de Lula, da CUT e do PT, relembram que Marx defendia a eliminação dos adversários, que o principal amigo de Lula no plano internacional, ou seja, Fidel Castro, eliminou todos seus opositores, em execuções sumárias, e que, no poder, esta "vocação" dos marxistas de se alimentarem do ódio transformará o país numa nação ingovernável e sangrenta.
Os exageros são, pois, o material de combate nesta luta que consagra a teoria Schmittiana de que, na política, o que menos interessa é o bem do povo e o que mais se busca é apenas o poder. O poder pelo poder, disfarçado na formulação teórica de belos ideais para a sedução da sociedade.
Há, pois, no Brasil, como de resto no mundo inteiro, e como houve sempre no passado em todo o globo, um "pluriverso político" de uma luta pelo poder sem maiores escrúpulos, em que a vitória, qualquer que seja o método utilizado, vale por si só e tudo justifica. O pensamento de Rotrou ao dizer "Tous les crimes sont beaux, dont un trône est le prix" é suficientemente precursor das teorias de Schmitt e Montesquieu sobre o que representa o poder para aqueles que o ambicionam.
No "pluriverso brasileiro" em 1994, não creio que a campanha eleitoral terá um elevado nível, com discussão dos grandes temas para que o Brasil se transforme num país evoluído, aproveitando o potencial de seu parque empresarial, o nível de seus profissionais, o grau de eficiência de seus trabalhadores e a substituição do "corporativismo funcional" pela "burocracia profissionalizada", com o Estado cuidando apenas do que realmente interessa à sociedade e não aos detentores do poder.
Tudo leva a crer, pelo ocorrido nos últimos tempos, que a campanha eleitoral dos que querem Lula e dos que não o querem será do mesmo nível da campanha de 1989, em que os candidatos estavam mais preocupados em mostrar o defeito alheio do que sua própria virtude.
Schmitt, em seu clássico estudo, considera ser ilusão esperar que na política a ética prevaleça, mesmo que sempre chamada a coibir, de forma superficial, o pronunciamento de todos os que ambicionam ou tentam manter o poder. Um povo cujos atributos fossem todos éticos ou que tivesse a capacidade de escolher apenas políticos moralistas para governantes construiria um regime sem oposição e um regime sem oposição constituiria um "universo", e não um "pluriverso", o que terminaria por excluir esse povo do concerto das nações. A inexistência de oposição política entre o amigo e o inimigo, segundo Schmitt –na prática, de impossível ocorrência–, se viesse a existir, poderia exteriorizar mais a fraqueza desta sociedade que seu fortalecimento, e a impossibilidade de se opor a outros povos no congresso universal.
Os ideais políticos são formulados pelos teóricos do Estado, mas usados, de forma conveniente e conivente, pelos políticos, como instrumento de acesso ao poder.
Os teóricos são aqueles que, na história, continuam a lutar para que a política seja uma ciência capaz de permitir ao Estado servir à sociedade por seus governos. Por isto, Bobbio ("Teoria das Formas de Governo") os exalta, com acerto e ilusão. São, todavia, os políticos que governam e raramente entre eles se encontram estadistas. Por isto Schmitt mais que Bobbio tem razão. Pelo menos, a história não o tem desmentido. A busca do poder, em verdade, não torna ninguém confiável.

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