São Paulo, segunda-feira, 3 de outubro de 1994
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Falta de política arrasa patrimônio histórico

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL A MINAS E BAHIA

O retrato mais cruel do estado do patrimônio histórico brasileiro é uma escultura em cedro de Aleijadinho (1730-1814) com dedos decepados. Aconteceu há sete meses. Bateu um vendaval em Congonhas (MG), o centurião romano que conduz Cristo à cruz caiu no chão e quatro dedos separaram-se da mão direita. Sem maiores estudos, os dedos foram colados e a janela pela qual o vento entrou continua aberta.
É um caso extremo, mas não difere muito do modo com que o governo federal trata os 991 bens tombados no país. Há abandono para todos os gostos:
A igreja da Misericórdia de Porto Seguro (BA), uma das mais antigas do país, cuja existência é relatada em crônica de 1583, acumula cupins e goteiras;
No Pelourinho, em Salvador (BA), o governo estadual investiu US$ 30 milhões para recuperar 400 casas dos séculos 17 ao 19, mas outras 86 estão em ruínas;
Em Olinda (PE), o deslizamento de uma encosta ameaça a igreja do Carmo, de 1580. Só restam outras duas igrejas jesuítas desse tipo no país.
Procura-se um rumo
Cupins, goteiras, ruínas e ameaças de deslizamento não são novidades no patrimônio histórico.
A novidade é que o órgão encarregado pelos bens, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), estava tão perdido desde o desmantelamento promovido pelo governo Collor em 1990 que sua prioridade não são obras; é restaurar o próprio órgão.
``Nossa política é preparar tecnicamente nossos quadros, e disso decorrerá um tipo de ação que se verá no futuro", diz Glauco Campello, 60, presidente do Iphan.
A política parece correta. Mas, enquanto o futuro não vem, volte-se ao centurião romano de Aleijadinho e se verá o presente.
O centurião está numa das seis capelas da Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. É o maior conjunto de esculturas do maior escultor brasileiro: 66 obras em cedro e 12 profetas em pedra-sabão, muitos destes mutilados há décadas. O acervo é patrimônio estadual, federal e da humanidade.
``Ninguém cuida das obras de Aleijadinho. O Iphan deveria cuidar, mas o padre não me deixa entrar nas capelas", diz Geraldo Xavier Filho, 55, único restaurador do Iphan em Congonhas.
O padre Benedito Pinho da Rocha, 56, reitor da basílica, também é acusado pela prefeitura de Congonhas de impedir a conservação das obras.
O prefeito Gualter Monteiro (PL), 53, entrou com uma ação na Justiça há um mês para tentar conservar as peças de Aleijadinho.
``Tenho minha consciência tranquila. O prefeito quer aparecer. Se existe alguma coisa de arte no mundo é porque a Igreja conservou", diz padre Rocha, 56.
Está aí, talvez, o melhor retrato do patrimônio histórico: virou uma questão paroquial.
``A situação do patrimônio histórico é muito grave porque não há uma política nacional", afirma Ângelo Oswaldo de Araújo Santos (PTB), 45, prefeito de Ouro Preto.
Sem esse rumo, quem acaba mandando nas cidades tombadas são prefeitos ou governadores. Isso ajuda a explicar por que Ouro Preto é a cidade histórica mais bem preservada do país, e Mariana, a 6 km de Ouro Preto, uma das piores.
``Prefeito de cidade histórica que for medroso não faz nada. O patrimônio histórico não faz e não deixa fazer", afirma João Ramos Filho (PMDB), 65, prefeito de Mariana pela terceira vez.
Ramos Filho fez tanto que já respondeu a 20 processos por não zelar o patrimônio histórico. ``Mariana é uma cidade depredada, mas o culpado não sou eu; é o crescimento", defende-se.
Rumo à moda baiana
Foi por falta de rumo e recursos federais que o ex-governador Antonio Carlos Magalhães tomou para si a tarefa de restaurar 400 dos 2.870 casarões do Pelourinho, no centro de Salvador.
Gastou US$ 30 milhões, acabou o projeto em dois anos e forneceu combustível para a mais polêmica restauração de bens históricos.
Explica-se a polêmica. Técnicos do patrimônio histórico consideram impossível fazer um trabalho sério em 400 casarões, ou 56 mil m2, no prazo de dois anos.
Pior: parte da população foi trocada por lojas. Segundo o governo baiano, 700 dos 7.500 moradores do Pelourinho deixaram o bairro; para a associação de moradores, esse número chega a 2.000.
O próprio presidente do Iphan diz que o Pelourinho ``virou cenário turístico sem a população".
``O Pelourinho era um beco sem saída: ou restaurávamos ou deixávamos o casario cair", diz Adriana Castro, 47, diretora do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Bahia.
Adriana diz que a equação era transformar um bairro decadente –habitado por desempregados, prostitutas e traficantes– numa região que conjugasse preservação histórica e valor imobiliário. Daí, a saída da população.
``Marginal tem que ser tratado pela polícia ou órgãos assistencias, não pelo patrimônio histórico", defende Adriana. ``Não pode haver romantismo: marginal não pinta a casa e joga fezes na rua."

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