São Paulo, segunda-feira, 3 de outubro de 1994
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Zemeckis encara herói inocente com cinismo

América é transformada em um paraíso de idiotas

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

Filme: Forrest Gump - O Contador de Histórias
Direção: Robert Zemeckis
Elenco: Tom Hanks, Robin Wright, Sally Field, Gary Sinise
Salas: Comodoro, Top Cine, Eldorado 6, Metro 1, Gemini 2 e circuito
``Forrest Gump - O Contador de Histórias", filme de Robert Zemeckis que estréia hoje em São Paulo, chega como um dos mais retumbantes sucessos da temporada de verão nos EUA. A história, simples, tem como protagonista um homem com um QI abaixo da média que vai sendo transformado involuntariamente em herói.
Zemeckis, mesmo diretor da série ``De Volta para o Futuro", é um cineasta que adora manipular as possibilidades do tempo. Em ``Forrest Gump", porém, o recuo no tempo não recorre à fantasiosa pirotecnia de um cientista maluco. Apenas faz uso de um recurso simples que o cinema aprendeu com a literatura: o flashback.
O tempo é a matéria a partir da qual se constroem as histórias que o protagonista narra para as pessoas enquanto todos aguardam a chegada do ônibus. A viagem de Gump é a mesma de todo americano que nasceu na década de 50.
Seu retorno no tempo revela uma natureza heróica, de sujeito ativo, que interfere na ordem dos fatos. Suas histórias particulares cruzam o fio da história coletiva, aquela dos grandes fatos que marcaram a vida americana nos últimos 40 anos, como o governo Kennedy, a Guerra do Vietnã, a conquista da Lua etc.
É esta coincidência, abstrata para todo mundo que vive mergulhado na inanidade do tempo cotidiano e não percebe que está sendo carregado pelo turbilhão da história, que torna tão mágica a viagem de Forrest Gump. O personagem é uma metáfora desta idiotia que marca todo indivíduo, tão ocupado com sua própria existência que é incapaz de perceber que o mundo não tem uma dinâmica autônoma.
Talvez esta coincidência entre ``inocência" e heroísmo seja a chave para se entender o sucesso do filme nos EUA. Gump seria um espelho no qual o americano médio reconhece sua própria vida.
Mas essa candidez que Gump encarna também é descrita com uma carga indispensável de ironia. Sua idiotia então pode ser encarada sob sua verdadeira face: a alienação. Enquanto toda uma geração se engaja nos movimentos de liberação, Gump prossegue como um autômato seu trajeto de herói da pátria.
Quando Jenny, sua amada, o abandona, Gump inicia um interminável ``cooper" através da América e não demora a ter atrás de si uma legião de fiéis esportistas. Aí, o filme, revelando uma perversão subjacente às intenções de Zemeckis, passa a ser uma dissecação, uma crítica cínica do mecanismo que consagra os idiotas como heróis.
Infelizmente, o amor que os americanos vêm dedicando ao personagem parece indicar que o tiro de Zemeckis saiu pela culatra.

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