São Paulo, segunda-feira, 3 de outubro de 1994
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Preconceito contra os Campos se repete há 40 anos

ARNALDO ANTUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois da provocação grosseira e gratuita de Bruno Tolentino ao poeta Augusto de Campos, que respondeu com veemência, motivando mais duas séries de insultos do primeiro (uma na Folha, outra em ``O Estado de S. Paulo", em 17/09/94); brotam agora repercussões, como a intervenção de Marcelo Coelho (``Polêmica reúne insultos e exibição erudita", ``Ilustrada" de 23/09/94), que vêm a público rapinar a ``polêmica" para decretar a ``decadência" e os ``dias contados" do ``formalismo dos irmãos Campos" –repetindo os mesmos preconceitos que estes enfrentam há 40 anos; vários deles compilados na colagem ``ready-made" publicada em 1976 na revista ``Qorpo Estranho", sob o título de ``The gentle art of making enemies": ``...muita algazarra e pouca fecundidade" (Gustavo Corção, ``O Estado de S. Paulo", 10/03/57, ``...uma voluntária castração, que não parece levar a nada" (Antonio Houaiss, 1957), ``...(a poesia concretista) emparedou toda uma geração, a partir de 1956" (Affonso Romano de Sant'anna, ``Veja", 16/07/76) etc.
Marcelo Coelho não surpreende, por já haver atacado a poesia de vanguarda diversas vezes em sua coluna semanal, sempre tão leviana quanto rapidamente; e por já haver demonstrado sua incapacidade para a análise de poesia em outras ocasiões, como por exemplo em seu artigo sobre Manoel de Barros.
A partir do momento em que ele adentra agora a discussão para expor sua intolerância contra a poesia mais interessante que se tem feito por aqui (e não me refiro apenas à poesia concreta, mas também a inúmeros poetas que assinaram o protesto contra as ofensas do artigo de Tolentino, e que ele define como ``um previsível grupo de admiradores de Augusto"), sinto-me motivado a responder, em parte por discordância com a sua concepção de poesia, em parte pelo desejo de afirmar a evidente diversidade de caminhos estéticos na produção poética de hoje, tão maior do que se quer fazer crer naquele artigo.
Colocando a máscara da isenção, Marcelo Coelho questiona os termos da polêmica. Condena o texto de Bruno Tolentino, considerando-o ``repulsivo" e atribuindo-lhe ``o gosto pela cafajestada". Ao mesmo tempo lamenta que este não tenha desferido seus golpes contra o livro ``Despoesia" (título que omite, chamando-o de ``recente coletânea de poemas de Augusto de Campos publicada pela Perspectiva"), ao invés de ter se voltado contra uma única tradução.
Tal sugestão aparece estampada como segunda manchete de seu artigo: ``Bruno Tolentino desperdiçou a oportunidade de criticar a esterilidade do concretismo ao atacar Augusto de Campos". Ao mesmo tempo em que diz ir contra o ``tom do artigo de Tolentino", anseia por vê-lo aplicado em escala mais larga. Quer dizer: a ``cafajestada" então não é condenável em si, mas dependendo de seu alvo? Está claro que sua intenção ali é forçar o processo que diz perceber: ``que os dogmas, as idéias, a maneira de se ler poesia, características do concretismo, estão em decadência... que o formalismo dos irmãos Campos está com os dias contados".
O articulista se refere ao ``concretismo" como se este se manifestasse ainda hoje sob a forma de um movimento. Acontece que no período em que isso ocorreu havia uma realidade cultural inteiramente diversa; um contexto ao qual fazia sentido responder sob a forma de uma articulação conjunta, com princípios estéticos e estratégias de ação comuns.
Sem abrir mão do compromisso com a novidade, do rigor e das preocupações voltadas para a materialidade da linguagem, os poetas que fizeram o movimento da poesia concreta passaram há muito tempo a desenvolver obras individualizadas, sem o caráter coletivo de movimento que os uniu nos anos 50. Nesse sentido, não há só desinformação como um tanto de distorção, em negar suas conquistas de linguagem para além daquele momento, tratando indiferentemente poetas tão singulares como Augusto e Haroldo por ``irmãos Campos", como se tal entidade existisse.
A principal acusação desse artigo se refere a uma suposta ``esterilidade do concretismo" –já tantas vezes repetida e respondida desde os anos 50. Segundo ele, ``só se fala, há muito tempo, em tradução; só se discute tradução, quase só se faz tradução. Isso é influência do concretismo –que assim disfarça a própria esterilidade".
É curioso que tal colocação seja feita justamente no momento em que é lançado o ``Despoesia" de Augusto de Campos – coletânea de 15 anos de produção poética (a última edição comercial de sua poesia, ``Viva Vaia", é de 1979). O próprio Augusto esclarece, em entrevista ao ``Jornal da Tarde" (24/09/94): ``Produzo pouca poesia. Cerca de dois ou três poemas por ano. Quero acreditar que isso provenha, em parte, de uma disposição de rigor, da idéia de uma `arte de recusas' (...)."
Mas ``esterilidade" aqui não se refere apenas à escassez de produção. Aponta, em parte, para uma suposta impossibilidade de dar continuidade às experiências de linguagem lançadas pela poesia concreta –fragmentação de núcleos vocabulares, subversão ou, em alguns casos, eliminação da sintaxe; exploração de recursos não-verbais como forma de excitar outros níveis de significação do verbal etc.
Como justificar, nesse caso, o prosseguimento das experiências individuais de Augusto, Haroldo e Décio Pignatari em várias áreas (da tradução à prosa, do CD ao vídeo, da poesia visual às apresentações ao vivo, da holografia à computação gráfica)? E como justificar o trabalho de várias gerações de poetas que atuam com independência estética, frente a uma tradição que inclui a contribuição preciosa da poesia concreta em seu repertório de referências e procedimentos, dando desenvolvimento ao fértil campo de pesquisas ali aberto, não só na poesia visual como na sua contaminação para outras mídias; não só na arte do verso (agora um pouco mais acima do chão, como na parábola de Cage) como na prosa poética; não só na poesia como na música popular?
Finalmente, se a acusação de esterilidade se refere ao tamanho reduzido de muitos poemas de Augusto de Campos (opção individual pela síntese; dizer o máximo com o mínimo), soará tanto mais descabida se colocada à luz da exuberância de um livro como ``Galáxias", de Haroldo de Campos. Além disso tudo, ainda se reclama do exercício da tradução, como se ele pudesse impedir, ao invés de alimentar, a produção original de poesia. Como se ele em si (principalmente, a tradução criativa, ou ``transcriação") não fosse produção original de poesia. Mas, para aumentar sua incoerência, em outro trecho de seu artigo, o crítico elogia como ``mérito imenso" dos ``irmãos Campos", ``divulgar autores desconhecidos". Eu pergunto se é possível divulgar autores desconhecidos de outras línguas sem os traduzir.
Marcelo Coelho esbarra no procedimento redutor de tratar isoladamene forma e conteúdo, como se os poemas de linhagem construtiva, por recorrerem mais ostensivamente aos jogos formais, não se justificassem semanticamente. Assim, usa o termo ``formalismo", fala em ``confiança mística, irracional (...) nas coincidências sonoras, no significante", que a seu ver acarretaria em ``desprezo pelo conteúdo".
Acontece que a poesia é justamente o espaço de linguagem onde a forma significa; onde significante e significado se amalgamam um ao outro, indissociáveis. Onde a linguagem se desfaz de sua arbitrariedade na nomeação do mundo, para se conjugar às coisas numa relação motivada. Ou, como quis Octavio Paz, ``...o lugar onde os nomes e as coisas se fundem e são a mesma coisa: `a poesia, reino onde nomear é ser" (``A Imagem", em ``Signos em Rotação").
E isso não é privilégio de vanguarda ou retaguarda, mas uma condição de toda poesia. Augusto de Campos intensifica justamente essa ``coisificação" da linguagem, atingindo alto grau de condensação de sentidos. Isso fica evidente nesse ``Despoesia", onde as múltiplas soluções gráficas também são usadas para ampliar os planos de significação.
Considerando apenas os componentes sonoros do significante, sem atribuir qualquer importância aos aspectos visuais (apenas mencionando-os –como ``experiências tipográficas" e, enigmaticamente, pois Augusto e Haroldo nunca trabalharam diretamente com manuscritura, como ``caligrafias" –para associá-los a um ``desprezo pelo conteúdo"), Marcelo Coelho acusa a ``mania pelo trocadilho", como um dos ``problemas da poética concretista" e como um de seus ``critérios facilmente adaptáveis ao analfabetismo".
O termo ``trocadilho", parece se aplicar aqui, de forma pejorativa, às aliterações, paronomásias, anagramas e outros jogos sonoros de que a função poética se utiliza para gerar aquela ``permanente hesitação entre som e sentido", a que Valéry se refere. Assim nomeando, tenta diminuir e invalidar toda pesquisa poética que associe similaridades fonéticas a ambiguidades semânticas.
Na verdade, ``trocadilho" poderia corresponder ao uso da função poética fora da poesia, como no, citado por ele, ``I like Ike". Mas, afinal, o que faz a poesia ser poesia, além do uso, com maior incidência, da função poética, precisamente definida por Jakobson? É justamente uma questão de finalidade –a propaganda quer vender o produto; o panfleto político visa o voto, ou a formação de uma determinada consciência; a linguagem cotidiana faz uso dela para agilizar a comunicação em algumas situações.
A poesia não visa nenhuma finalidade prática exterior à sua manifestação; tem uma finalidade em si, que Pound definiu como ``nutrição de impulsos": ``Parece-me bastante possível sustentar que a função da literatura como força geratriz digna de prêmio consiste precisamente em incitar a humanidade a continuar a viver; (...) em nutri-la, e nutri-la, digo-o claramente, com a nutrição de impulsos" (``Como ler", em ``A Arte da Poesia").
O artigo de Marcelo Coelho acusa a ``poética concretista" de desprezar ``tudo o que de secreto e sensível possa haver no entendimento poético do mundo". Ora, qualquer entendimento poético do mundo passa pela linguagem; aliás qualquer entendimento do mundo passa pela linguagem. Não existe pensamento sem ela. Portanto o corpo a corpo com essa matéria é inerente à produção poética.
Quanto à questão da sensibilidade em si, faz lembrar a velha cantilena que a opõe à atividade cerebral, separando categorias que, tanto no plano estético como no fisiológico, se completam, se traduzem, se alimentam mutuamente. Augusto de Campos toca a questão, com clareza, no poema ``coraçãocabeça", de 1980 (presente em ``Despoesia"):
``cor(em(come(ca(minha)beça)meu)ação/
cabe(em(não(cor(meu)ação)cabe)minha)ça".
O artigo de Marcelo Coelho tenta enquadrar o contexto poético da atualidade na ótica de uma polaridade que já não abrange suas manifestações. Não dá para reduzir os caminhos da poesia, como se eles estivessem sendo monopolizados por grupos como ``os irmãos Campos" e os ``que são contra os irmãos Campos".
Transferir relações de poder comuns à área política, ou às batalhas comerciais, para a vida estética incorre em perigosa generalização. Nosso momento histórico-cultural não reflete a necessidade nem a possibilidade de movimentos coletivos que apontem o futuro numa única direção. Multiplicaram-se os meios, os procedimentos e as formas de enfrentar a questão da novidade frente à tradição. A poesia brasileira avança para muitos lados, e muito desse avanço se deve ao trabalho que Augusto de Campos vem fazendo por ela, há tantos anos.

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