São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
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A segunda revolução democrática

FRANCISCO WEFFORT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nossa curiosidade sociológica nos levou por estradas marginais a um mundo cada vez mais miserável, até que entramos em uma aldeia indígena que fazia uma festa de inauguração de seu sistema de esgotos, construído com apoio do governo e dos ``peace corps". Os dois chefes que vieram cambaleantes nos receber na entrada da aldeia estavam tão bêbados quanto os chefes têm o direito de estar em uma festa do gênero, onde a comida principal era um roedor (o ``cui"), que mais parecia um ratão, e que vinha junto com farta distribuição de ``chicha morada", um fermentado de milho capaz de fazer desandar qualquer intestino ocidental e cristão. Embora comovido como eu, com a curiosa mistura humana dos índios e dos ``peace corps", Fernando não aguentava: ``isso é demais para mim, Weffort, eu tive uma educação muito burguesa".
Presidente reformista
E, contudo, se Fernando Henrique ganhou as eleições em cima do Plano Real, há que lembrar também que o Plano tem sido, pelo menos até aqui, uma complicada mistura de know how técnico, apoio das elites e dos grupos dominantes e... uma enorme sensibilidade popular. Uma sensibilidade surpreendente para quem, como Fernando, não tem o gosto, tão frequente em políticos brasileiros de origem burguesa, pelo ``cheiro do povo".
Um fato surpreendente, mas não inédito na história brasileira, na qual contamos alguns outros exemplos de grandes intelectuais que aguçam a sensibilidade com o uso da inteligência e da cultura. O mais notável foi Joaquim Nabuco –elegante aristocrata do Império, chamado por alguns de Quincas, o Belo –finíssimo historiador da sua época (e da de seu pai) e, ``last but not least", campeão liberal da luta pela abolição da escravatura. Não sei até onde vai a influência de Nabuco sobre Fernando, mas não tenho dúvida de que conhece muito bem a sua vida e a sua obra.
Nabuco se dizia um seguidor dos liberais ingleses, um seguidor de Gladstone. Não estou muito convencido que Fernando Henrique busque modelos lá fora, embora um excelente artigo publicado aqui na Folha, por José Luís Fiori, chame a atenção para as suas confluências com o chamado ``consenso de Washington". (Um excelente artigo que eu sei, irritou Fernando, o que prova que o artigo é muito bom e que Fernando continua o intelectual que sempre foi. Só intelectuais amam idéias ou se irritam com elas).
Mas se não estou convencido que Fernando busque modelos lá fora, sempre me pergunto o que vai poder fazer no seu governo, tendo os aliados conservadores que tem. Se a sua obra permite alguma previsão sobre a sua conduta futura, esta será a de um chefe de Estado empenhado na modernização e na democratização da sociedade brasileira. Ele desejará que o país continue crescendo mas que seja menos injusto –esse é o ponto. Significa dizer, desde logo, que quem quiser fazer oposição ao novo governo supondo que seu presidente é um conservador, estará tomando o caminho errado.
Qual é a ordem do dia?
A grande questão, porém, é que o presidente, por importante que seja, não é tudo no governo da República. Fernando terá que conviver com forças políticas de signos muito diferentes entre si, em alguns casos talvez de sinais contraditórios. De novo, o Império oferece as fórmulas clássicas das elites brasileiras em situações como esta. A primeira é a da ``política da conciliação". A segunda diz que nada é mais parecido a um conservador do que um liberal no poder. A terceira, em compensação, diz os liberais reclamam e os conservadores reformam. Juntas, são imagens que nos conduzem à certeza de uma forte inclinação conservadora do Estado no país. Não foi assim que ao longo de quase meio século, se chegou à abolição da escravatura?
O grande problema, a meu ver, é que as fórmulas do Império talvez já não sejam eficazes no Brasil de hoje tão diferenciado estruturalmente. Até onde se pode ver, agora o Estado só pode funcionar de acordo com princípios pluralistas. Isso que dizer que o presidente Fernando Henrique terá que contar com um complexo esquema de alianças para sustentar seu governo (e, evidentemente, toda aliança tem seu custo). E que só poderá levar adiante as suas reformas se contar com uma oposição também reformista, talvez mais reformista do que ele. Esta oposição reformista estará sob a liderança do PT ou simplesmente não existirá.
No campo da oposição, haverá que se entender que se já não há lugar, neste país, para governos monopolíticos, também já não há espaço para as chamadas oposições sistemáticas. Em determinado momento da campanha, Lula acusou Fernando de plágio. Curiosamente, o ``intelectual orgânico" da classe operária, trazia à baila um tipo de acusação que só teria sentido entre intelectuais ``tout court". Plágio ou coincidência de pontos programáticos, a questão que se coloca agora é a seguinte: como poderá o PT deixar de apoiar o novo governo pelo menos nestes pontos? A propósito, esta história de que o país tem que deixar de ser injusto, será que isso não é plágio também? À parte as divergências, que também existem, de quantos plágios são feitas as brigas dos reformistas em todo o mundo?
O Brasil que, como diz Fernando Henrique, não é tão subdesenvolvido quanto injusto, tem agora a sua chance de mudar. Ou melhor, de começar a mudar. E as razões mais simples, pontas de iceberg de processos históricos muito complexos, são de que terá no governo um grande líder intelectual e, na oposição, um grande líder operário. E os dois muito provavelmente estarão chefiando, cada qual pelo seu lado, e cada qual à sua maneira, dois partidos novos –o PT e o PSDB– de cujo debates se espera que tenha a capacidade de estabelecer os temas do Congresso. Não se pretende que venham a ser, nem isoladamente, nem somados, a maioria do Congresso, mas que tenham a capacidade de definir isso que se chama em política de ``a ordem do dia". Ou a agenda, se quiserem.
Se a agenda apontar para o lado certo, nós estaremos, como país, caminhando no sentido da consolidação da democracia política e de uma sociedade menos desigual. Estaremos caminhando no sentido de uma economia mais desenvolvida e de uma sociedade menos injusta. Não é isso que se chama, em geral, de modernidade? Se for este o caminho, e eu sinceramente espero que assim seja, estas eleições de 1994 ficarão na nossa história, depois de 1930, como o início da nossa segunda revolução democrática.

FRANCISCO C. WEFFORT, 56, é profesor titular de Ciência Política da USP e ex-secretário-geral do PT. É autor, entre outros livros, de ``O Populismo na Política Brasileira", ``Por que Democracia?" e ``Qual Democracia?".

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