São Paulo, terça-feira, 4 de outubro de 1994
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'Forrest Gump' lança o idiota como herói

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os idiotas são antigos na literatura. ``Forrest Gump" (O Contador de Histórias) é um filme idiota ou um filme inteligentíssimo feito em computador sobre um idiota para agradar os idiotas? Nunca saberemos. Só sabemos que tanto os produtores como a personagem se dão bem: todos ficam ricos.
Como medir o grau de consciência dos produtores americanos quanto à propaganda de seu sistema de vida, se eles mesmos são tão imersos no próprio caldo de cultura que seria a mesma coisa que pedir a uma minhoca que analisasse o buraco em que vive. É óbvio que não vou criticar o ``Forrest Gump" com a verruma de uma esperança, com a ferina condenação da caretice do filme. Será que o filme merece este ódio, como uma peça ``de direita" que tem de ser ``condenada"? Será que adianta analisar algo, ainda?
O filme viceja a partir deste desânimo crítico que tomou conta do mundo. Talvez eu fique reduzido a ser eu mesmo um ridículo ``gump" (estúpido, no ``Webster's Dictionary") sul-americano, querendo ser relevante num mundo onde tudo é cada vez mais irrisório.
``Forrest Gump" transforma sem pensar (ou pensando) 30 anos de história americana num trem parador de banalidades, principalmente as violentas lutas românticas que a América deu ao mundo nos anos 60 e 70. ```Forrest Gump" já fez mais de 60 milhões de dólares na bilheteria e será um dos maiores sucessos de todos os tempos.
O filme tem alguma intencionalidade política ou não? Não sei. Como o mercado americano esconde uma ideologia em cada salsicha produzida, em cada caixa de ``corn flakes", em cada spray de laquê, em cada parachoque cromado!... Como é inconsciente (e ubíqua) a virulência conformista deste país, o que lhes (nos) dá uma deliciosa sensação de eternidade (``a Cola Cola", pensava eu criança, ``existirá para sempre?"). Sim, hoje sei que a Coca Cola existirá para sempre, para além da vida e da morte.
Esta ``segurança", por outro lado, nos traz de volta o velho ``feeling" de arrepio na espinha, de que talvez sejamos vítimas de algo não mais mensurável ou contabilizável. Só que este temor não tem mais a indignação transida de esperança de 30 anos atrás, não tem mais nada; não passa de uma remota oscilação na escala Richter da alma, inofensiva e vaga.
No entanto, o que me dá medo é justamente a inofensividade do filme. Ele tem a tranquilidade das coisas definitivamente resolvidas.
Na literatura, os idiotas eram videntes. Através de seus olhos, víamos o mal do tempo, o absurdo da vida.
Tivemos os loucos-sábios de Shakespeare, tivemos o ``Candide" de Voltaire, cujo otimismo mostrava num espelho invertido a sordidez da vida, houve o ``Wozzeck" de Buchner, transformado em molambo pela maldade dos poderosos que lhe tiraram tudo, tivemos os ``Bouvard et Pecuchet" de Flaubert, tivemos o Benjy de ``O Som e a Fúria" de Faulkner e tantos outros, através dos quais a crueldade do mundo ficava visível. O idiota era o sábio ao contrário, que por sua derrota condenava a sociedade.
Neste filme, algo estranho se passa quase imperceptivelmente (qualquer criticismo me parece hoje ``paranóia"). Forrest Gump não critica o mal do mundo. Em sua trajetória, ele esbarra em 30 anos decisivos dos EUA e critica aqueles que o criticaram. Forrest Gump condena os condenadores. Forrest Gump em suas lembranças vai transformando em caricatura óbvia toda a sucessão de movimentos transgressivos.
Tudo que contestou o sonho americano nos últimos 30 anos é suavemente ridicularizado para impor uma sabedoria do idiota, uma espécie de imbecilidade ``clean", doce, que seria mais sábia que os que lutaram contra o mundo torto. Assim, o movimento negro é transformado em um grupo de loucos idiotas que espancam mulheres; os hippies, liderados por um Abbie Hoffman ridicularizado, parecem mendigos-palhaços, a invasão do Vietnã se transforma num picnic mal organizado, a sexualidade explosiva dos anos 60 e 70 é transformada em sujas orgias cheias de pecado e decadência. Gump se vinga dos ``hips".
Forrest Gump é computadorizado para dentro do Dick Cavet Show (um talk-show de sucesso na época) entrevistando John Lennon e até a música ``Imagine" é desancada na brincadeira, até os veteranos do Vietnam aleijados viram um poço de rancor tão despropositado que parecem dar razão ao Estado que os enviou ao desastre da guerra. A história americana recente é banalizada com pequenos truques de computador que inserem Gump com Kennedy, Nixon, numa manipulação sutil que inocentemente transforma tudo num videogame de bobagens que desidrata e uniformiza tudo numa brincadeira inofensiva.
Entenda bem. Nada disso foi feito ``intencionalmente", com a maldade de uma propaganda contra os anos de heroísmo e esperança. Tudo é espantosamente inocente, mas cai como uma luva num mundo onde nada mais acontece, onde tudo é administrado por uma idiotia inteligente, que dá certo e compensa. Gump fica rico por acaso, pescando camarões e entrando na sociedade da Apple computadores. Tudo que ele quer é apenas o amor de Jenny, uma jovem que, já que foi violentada pelo pai na infância (sic), foi condenada à uma vida difícil que passa por todos os movimentos contestatórios, pois, claro, só os anormais poderiam escolher a transgressão.
A contestação neste filme vira uma espécie de distúrbio mental, enquanto o idiota é saudado como o símbolo silencioso de uma saúde social nova e pura. Há uma santificação da burrice diante da imutabilidade inevitável da vida americana. É interessante notar que Jenny, a namorada de Gump, é punida por seus excessos. Ela, que foi hippie, amante de negros, contestadora em Washington, ela, como uma réplica pós-pós da heroína de ``Love Story", morre castigada por um vírus misterioso no final (será uma metáfora da Aids?) e deixa com ele o filhinho dos dois, um pequeno duende Gump que será o homem do futuro.
Nos EUA de hoje, um Hunter S. Thompson por exemplo virou figura arcaica com seu ódio fora de moda contra o ``american dream".
Surgiu um novo tipo de contestador silencioso: o ``slacker". Este é o jovem que, numa melancolia sem rumo, não tem mais curiosidade nem raiva, não luta por nada, busca uma espécie de ignorância ideológica de nada querer saber, e vaga pelos bares e ruas numa tristeza endêmica e silenciosa, num hino à melancolia do pós-tudo. O ídolo dos ``slackers" é o suicida Kurt Cobain, a morte sem motivo, o nada como cotidiano aceito. O ``Gump" (nome que cunho agora) seria uma espécie de antídoto ``de direita" deste ``slacker". Ainda há no ``slacker" a inteligência reprimida, o amargor nômade, uma crítica muda à sociedade que não o acolhe.
O idiota feliz é o ``Gump", o bobo digitalizado, o obediente programado, que aceita tudo que fazem com ele e que é premiado por uma boa inserção social. O ``Gump" é o ``crew-cut american", cabelo escovinha, pronto para servir, como um soldado à paisana. É interessante notar que ele não envelhece nos 30 anos que se passam e fica como um andróide de corporação durante o filme inteiro.
Claro que, se algum plano ideológico os produtores deste filme tiveram, foi tipo: ``o mercado de cretinos é imenso e vai se identificar com o santo herói e este filme dará um granão!". Até aí eles foram. Forrest Gump é o precursor do que seremos. É o habitante ideal da sociedade homogênea. É o idiota que venceu. É uma espécie de ``anti-Candide" que prova que vivemos no ``melhor dos mundos". Mas, tudo isso que eu escrevo não importa a ninguém. O filme emociona o público com a bondade do pobre idiota, habitante descerebrado do ``fim da história". Tudo é muito inocente; e isto é que me dá medo.

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