São Paulo, quinta-feira, 6 de outubro de 1994
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No tempo da ditadura

OTAVIO FRIAS FILHO

Não sei se alguém ainda se lembra de Francelino Pereira. Numa reviravolta típica da política, ele acaba de ressurgir do vácuo para cair sentado numa cadeira de senador por Minas Gerais.
Pereira foi um dos bonecos de ventríloquo mais apagados do regime militar, e quem reclama, com razão, do tédio democrático, é porque não sabe ou não se recorda de como o tédio pode ser pior.
Paradoxalmente, porém, ele criou duas frases destinadas a ficar, por sua força expressiva, na crônica. Alguém diria que o seu gênio político se exauriu na elaboração das duas pérolas.
``Que país é este?", filosofou um dia, e todos nós, privados até do direito de autogoverno, percebemos que a indagação calava fundo.
O segundo achado foi chamar a Arena de ``o maior partido do Ocidente". A exclusão era escrupulosa: referia-se aos partidos comunistas do Oriente, tão arena quanto a Arena, mas asiaticamente maiores.
Pois não é que o PSDB, quase 20 anos depois, está prestes a se tornar o ``maior partido do Ocidente"? Há muito segundo turno pela frente, mas a votação depositada aos pés de FHC e o magnetismo da vitória refazem o espectro das adesões, velho conhecido.
Nele só não têm lugar os muito derrotados e os muito idealistas, o que geralmente é a mesma coisa. Segundo as pesquisas, Francelino Pereira não se enquadra em nenhuma das categorias.
Disse que o PSDB se transforma no maior partido, mas o correto talvez fosse dizer que o maior partido vai encarnar, como um Drácula, no PSDB. Já foi Arena, PDS, PMDB, PRN-PFL e agora, por que não, será tucano.
Leigos, temos aliás uma visão superficial dos partidos. Imaginamos que eles representam sonhos, causas, programas. Tudo isso é verdade, mas tão-somente num nível muito exterior.
Porque ao passo que cultivam sua feição ideológica, aparente, os partidos vivem uma realidade mais prosaica: são agências de interesse, grupos de silencioso assalto ao poder, articulados por afinidade geográfica e geracional.
Mosca e Pareto, dois sociólogos italianos de má fama, teorizaram no começo do século sobre a circulação das elites. Sua idéia é osmótica: as paredes do poder absorvem a renovação; o equilíbrio do sistema é maior quanto mais contínua for a filtragem, de modo a evitar represamentos e prevenir inundações.
Lembro da minha surpresa quando fui ao Teatro Municipal no governo Montoro e tropecei, não com socialites, mas com socialistas de colete. Mais ``parvenu" do que eles, era a primeira vez que eu ia ao Municipal e por isso mesmo o contraste não poderia ser maior, Mosca e Pareto em plena ação.
Somos mestres na circulação de elites. Repousa aí nossa permeabilidade, nossa história pouco cruenta e a rigidez de pedra das nossas estruturas coloniais. Não sei se isso é bom ou ruim, embora suspeite de que possa ser péssimo.
Numa concessão ao misticismo eleitoral, faço votos de que Francelino Pereira não tenha sido eleito em vão e justifique a volta com nova pérola capaz de iluminar o tédio democrático, ele a quem a inspiração visitou duas gloriosas vezes, no outro tédio.

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