São Paulo, sexta-feira, 7 de outubro de 1994
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Boca-de-urna

JOSÉ SARNEY

Roberto Campos, num bom jantar maranhense, comeu um arroz-de-cuxá e fez uma revisão de seus conceitos econômicos: ``Acho que o desenvolvimento não deve ser avaliado pela renda `per capita', e sim pela culinária. País de culinária é país desenvolvido! O Maranhão tem culinária!"
E o que tem a culinária com a boca-de-urna? É que estou, também, revendo minhas definições sobre o que é a democracia. Estou abandonando as formulações teóricas para ficar nas amostragens práticas. País democrático é aquele que não tem boca-de-urna.
A boca-de-urna é a versão atual dos caceteiros dos tempos do Império, aqueles que iam para as eleições convencer os eleitores na paulada. Haja cabeça quebrada!
O boqueiro quer violar a consciência do eleitor. Já vi eleições nos Estados Unidos e na Europa. Parece um dia normal. Ninguém aborda ninguém. Todos estão com a sua escolha feita.
Aqui, a cada eleição, faz-se uma lei proibindo boca-de-urna. O TSE, às vésperas do pleito, busca conciliar a lei com a tolerância. Não se pode falar nem reunir, mas se pode portar bandeira, usar bottons, camisas, fazer a festa, isto é, a boca sem boca.
A polícia, encarregada de zelar pela lei, não enfrenta torcida organizada. É o jeito brasileiro do ``deixa para lá". Uns cumprem a lei, outros não.
Mas é a prova de baixo nível político da violação da prática democrática o costume da boca-de-urna. Para termos uma democracia moderna, respeitável, não podemos ter boca-de-urna.
É inadmissível tentar modificar o voto no dia da eleição por influência dos outros. Isto é a eleição primitiva. Vem dos primórdios da democracia.
Conta Plutarco que os candidatos montavam mesas no Campo de Marte, onde se realizavam os sufrágios, leia-se eleição, e vinha a cabala a espada, a pau, pedra, faca, o diabo. Contam os historiadores da época que Pompeu teve a túnica manchada num desses conflitos, e sua mulher Júlia, filha de César, abortou ao vê-lo ensanguentado.
O precursor do boqueiro foi o nomenclador. Talvez daí o nome que adotamos de boqueiro. Sabe o que era?
A função exercida por um escravo liberto, que acompanhava o candidato e lhe dizia no ouvido o nome do eleitor, para ser ``cantado". O povo não concordou. Era uma fraude. O candidato tinha que saber o nome do eleitor na hora de votar e se não sabia, tinha fraca memória ou esquecimento, não podia merecer o voto.
Grandes memórias, registra a história, foram César, Catão, Crasso e Túlio.
A lei dos ``nomencladores" foi revogada como indigna. Mas surgiram outras formas de boqueiros.
O próprio César colocava os soldados para agir no dia da eleição, como boqueiros.
No Império, no Brasil, quebrar urna e usar os caceteiros eram práticas costumeiras. A motivação? Mudar a vontade do eleitor.
Assim, no boqueiro de urna está uma das antigas reminiscências das democracias primitivas. Devemos bani-la.

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