São Paulo, sexta-feira, 7 de outubro de 1994
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A missão impossível

TARSO GENRO

``O que temos que perceber é que a elaboração do luto já é uma construção positiva do novo objeto e, portanto, é a busca de um novo caminho, a busca de uma nova saída." (``Órfãos da Utopia –A Melancolia da Esquerda", Ernildo Stein)
Em recente conversa com Robert Kurz e Elmar Altvater –proporcionada pela presença de ambos num seminário do Instituto Goethe, em Porto Alegre (RS)– o diálogo afunilou-se para as posições do Partido dos Trabalhadores sobre a compatibilização, no país, dos novos padrões de acumulação com um programa realista de criação de empregos num mundo de economia internacionalizada, com milhões de desempregados na Europa.
Kurz tem uma visão mais cética do que Altvater das possibilidades de uma verdadeira política distributiva na crise contemporânea. Altvater concordou, porém, de maneira expressa, que através de uma teoria democrática do Estado atual –e aqui emerge a grande contribuição de Bobbio– é possível opor-se à barbárie que se coloca hoje como a maior possibilidade da humanidade. Respondi, todavia, com evasivas à indagação de ambos, pois não temos uma posição sólida sobre o assunto.
Cheguei à conclusão que não foi só o socialismo burocrático totalitário que faliu neste fim de século voltado para a xenofobia e o ódio racial. Foram, também, os que se apresentaram como socialistas –e efetivamente eram democráticos–, mas que, para permanecerem assim, adotaram posições clássicas do liberalismo, como na França e na Espanha, ou se contentaram com a ``primeira magistratura" como em Portugal.
A manutenção do rótulo, porém, envelheceu ainda mais o socialismo e transformou sua linguagem messiânica num protesto humanista arcaico. Frágil para se opor ao novo ``Estado ampliado", que funde num só aparato político-econômico a burocracia, os banqueiros e as grandes corporações monopolistas de comunicação.
Ocorre que o mundo mudou radicalmente. O capitalismo não é mais o mesmo, a economia está plenamente globalizada –o que não é nada estranho a Marx–, mas o proletariado da grande indústria, que foi a base da sua teoria da história, tem tanta importância para o futuro, como elemento proponente de outra ordem social, como qualquer outra classe subjugada. Hoje é impossível fundamentar um projeto estratégico no seu significado econômico-social, como foi possível na cultura do velho socialismo revolucionário e na social-democracia reformadora.
Fernando Henrique compreendeu perfeitamente tudo isso e abdicou até da social-democracia. O PT não compreendeu e remendou o ``furo" do socialismo clássico com uma visão social-democrática, obreirista-reformista, tão superada como o socialismo soviético: foi um acordo com a consciência antiga –uma melancolia como diria Ernildo Stein–, já que a social-democracia também não tem mais interlocução para gerar um bloco dirigente moderno. Ela se limita a responder à crise com o distributivismo ``via" Estado e não com um projeto real de controle do Estado pela sociedade civil, único elemento capaz de desconstituir o corporativismo.
O pior, porém, que pode nos acontecer no momento é, confirmada a derrota de Lula, culpar a grande mídia –como se pudéssemos ter uma estratégia de vitória com a solidariedade da mídia; buscando responsáveis individuais –como se a nossa linha de campanha não fosse resultado de uma cultura política; achando que o candidato esteve aquém das possibilidades programáticas que o partido lhe ofereceu –como se Lula fosse um Deus e não um quadro de qualidade de uma esquerda que busca sua direção após a queda do socialismo real.
O pior que pode nos acontecer é não compreender que a mediação de um novo projeto socialista-humanista, compatível com o mundo da multimídia, da economia global, da produção da inteligência artificial, da informática, robótica e biogenética, passa por uma transição modesta e possível, embora difícil: compatibilizar crescimento, emprego, estabilização da moeda com um Estado eficiente, para recompor um patamar civilizatório compatível com a retomada dos valores de justiça e igualdade social. A barbárie atual gera as bases para um fascismo novo tipo e não para a democracia e civilização.
Para isso o PT e seus aliados deveriam participar do debate estratégico e ter respostas sobre o verdadeiro tema que interessa àquelas forças capazes de formar uma base social moderna, com capacidade de irradiação para os setores médios e para as massas assalariadas desses setores modernos, formadoras de opinião e vanguarda da produção.
Não podemos esquecer que a luta por projetos novos, queiramos ou não, se dá, sempre, nos pólos mais desenvolvidos da sociedade e não naqueles superados e envelhecidos.
Quais foram as nossas propostas para os setores que verdadeiramente interferem no cálculo econômico? Para os setores que pautam o desenvolvimento tecnológico e orientam o conjunto do desenvolvimento industrial? (Ou seja, as grandes empresas nacionais, trans e multinacionais, as médias empresas de alta tecnologia, os grandes e pequenos empreendedores que investem na inteligência artificial e geram a produtividade na indústria e na agricultura). Qual foi a nossa proposta para um país que precisa integrar-se de maneira competitiva na nova ordem global?
Foram propostas tão escassas e mal formuladas que não conseguiram polarizar os setores mais dinâmicos da sociedade, o que permitiu que FHC, mesmo junto com Maciel e ACM, aparentasse representar o Brasil do futuro.
Para falar com sinceridade aos excluídos e marginalizados, aos desempregados e aos miseráveis, que são a base da nossa proposta partidária, deveríamos ter respostas para dizer o que faríamos da ``ponta" do Brasil moderno, que irradia os seus efeitos sobre toda a economia, pauta, orienta e induz o processo econômico e industrial.
Sem essas respostas, ficamos num distributivismo formalista, que aliás só pode ser verdadeiro e eficaz se as forças mais avançadas da economia puxarem o resto da carroça e gerarem um excedente a ser socialmente apropriado.
Por isso, quando Lula falava em nosso nome, com sinceridade, brilho e amor ao povo, ficávamos comovidos e orgulhosos do nosso candidato, mas sentíamos, quase todos, que lhe tínhamos dado uma missão impossível. Sabemos, no entanto, que os destinos do país e do PT estão fundidos em definitivo e nós estaremos à altura da responsabilidade de dirigi-lo quando chegar a nossa vez.
Comecemos, de novo, a nos preparar.

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