São Paulo, domingo, 9 de outubro de 1994
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A necessidade de criar e aniquilar

SCARLETT MARTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

``Sou de longe o homem mais terrível que até agora existiu; isso não exclui que eu venha a ser o mais benéfico", escreve Nietzsche em sua autobiografia. ``Conheço o prazer de aniquilar num grau que corresponde à minha força de aniquilar, –em ambos obedeço à minha natureza dionisíaca que não sabe separar o `fazer não' e o `dizer sim' ". Ao descrever-se, o filósofo revela como inerentes duas atitudes: a de destruir e a de construir. Ao examinar seu pensamento, o leitor detecta como intrínsecas duas vertentes: a face corrosiva da crítica dos valores, com o procedimento genealógico, e a face construtiva da cosmologia, com o conceito de vontade de potência, a teoria das forças e a doutrina do eterno retorno.
Ao analisar seu projeto de transvalorar todos os valores, percebe que não basta substituir os antigos valores por outros, gerados a partir do mesmo solo que os anteriores; é necessário suprimir o solo mesmo a partir do qual eles foram colocados, para então engendrar novos valores. Ao percorrer seu livro mais controvertido, ``Assim Falava Zaratustra", observa que a personagem central determina que, para ser um criador em bem e mal, é preciso ser um destruidor das tábuas de valores. As duas vertentes do pensamento de Nietzsche, as duas exigências de seu projeto, as duas determinantes de Zaratustra parecem traduzir a dupla necessidade do filósofo: aniquilar e criar.
Mas a atitude de destruir e a de construir revelariam um traço esquizofrênico em sua obra? Aniquilar e criar estariam desvinculados? Constituiriam termos dicotômicos? Na análise da arte grega, no exame da noção de verdade, na crítica à linguagem, no combate à metafísica, Nietzsche entende que não é possível conservar um termo da oposição sem assumir o outro; impõe-se, pois, eliminá-la. A recusa das dicotomias é uma constante em seus escritos. Dessa perspectiva, seria errôneo conceber as duas vertentes de seu pensamento como compartimentos estanques. Seria equivocado apreender as duas exigências de seu projeto de transvaloração dos valores como determinações paralelas. Seria improcedente compreender sua dupla necessidade como atitudes independentes. Destruir e construir constituem momentos de um mesmo desenrolar, movimentos de um mesmo processo. Ao evocar o nome de Dioniso para definir-se, Nietzsche reclama que se leve em conta a relação intrínseca entre eles. Com a palavra `dionisíaco"', esclarece, ``é expresso o sentimento da unidade entre a necessidade do criar e do aniquilar" (14 (14) da primavera de 1888).
Dionisíaco é o mundo. Na ótica nietzschiana, ele apresenta-se como pleno vir-a-ser: a cada mudança se segue uma outra, a cada estado atingido se sucede um outro. Totalidade permanentemente geradora e destruidora de si mesmo, ele é um processo –e não uma estrutura estável: os elementos em causa, interrelações– e são substâncias, átomos, mônadas. Pluralidade de forças em permanente tensão, ele não é governado por leis, não cumpre finalidades, não se acha submetido a um poder transcendente; se permanece uno, é porque as forças, múltiplas, estão todas interrelacionadas. Efetivando-se, elas agem sobre outras forças e resistem a outras mais; tendendo a estender-se até o limite, irradiam uma vontade de potência. Isso não significa que a vontade de potência seja uma substância ou uma espécie de sujeito; tampouco quer dizer que constitua em ente metafísico ou um princípio transcendente. Explicitação do caráter intrínseco da força, ela é fenômeno universal e absoluto; ``esse mundo é vontade de potência –e nada além disso!"
Dionisíaca é a vida. Da perspectiva nietzschiana, ela identifica-se à vontade de potência. Esta, enquanto vontade orgânica, é própria não unicamente do homem, mas de todo vivente. Mais ainda: atua nos órgãos, tecidos e células, nos numerosos serem vivos microscópicos que constituem o organismo. Efetivando-se em cada elemento, encontra empecilhos nos que o rodeiam; convertendo o obstáculo em estímulo, desencadeia uma luta que não tem pausa ou fim possíveis. Animado por um combate permanente, o organismo consiste numa pluralidade de adversários, tanto no que diz respeito às células quanto aos tecidos ou órgãos. Até o número dos seres vivos microscópicos que o constituem muda sem cessar; no limite, a todo instante qualquer elemento pode vir a predominar ou a perecer. Justamente por ser a luta o seu traço fundamental, ``a vida vive sempre às expensas de outra vida". Precisamente porque a luta garante a permanência da mudança, ``nossa vida, como toda vida, é ao mesmo tempo uma morte perpétua".
Não é por acaso que Nietzsche se diz ``um discípulo do filósofo Dioniso". Ele reivindica a necessidade de destruição, mudança, vir-a-ser: reclama o processo permanente de aniquilamento e criação. Quer afirmar este mundo tal como ele é, ``esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar- a-si-próprio e do eternamente-destruir-a-si-próprio". Quer afirmar esta vida, interpretando seu caráter efêmero ``como gozo da força procriadora e destruidora, como criação contínua".
E não há afirmação maior da existência que a afirmação de que tudo retorna sem cessar. Aterrorizante, a doutrina do eterno retorno aponta a falta de sentido das mais

Continua à pág. 6-7

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