São Paulo, sábado, 15 de outubro de 1994
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``Dois real" por quê?

JOSUÉ MACHADO

Por que será que muitas pessoas, não necessariamente analfabetas, falam ``dois real", ``cinco real", ``dez real" e assim por diante, ignorando o plural óbvio –reais– de nossa gloriosa moeda? Terá algo a ver com os ``dois chope e dois pastel" que os cariocas imputam, isso mesmo, imputam, a paulistas simples?
O real não se inclui entre os substantivos que só se empregam no singular, apelidados por alguns gramáticos de singularia tantum (os que só se usam no plural são chamados de pluralia tantum em bom latim).
1. Entre os substantivos que só se usam no singular estão:
a. os que designam massa, em vez de indivíduos: ferro, ouro, oxigênio, prata e outros;
b. os que exprimem noções abstratas, vícios e virtudes: fé, esperança, caridade, preguiça, sensatez e outros;
c. os que designam produtos vegetais e animais: açúcar, arroz, cana, feijão, leite, vinho etc.
Só em condições especiais eles são utilizados no plural: dois cafés (xícaras), cafés finos (tipos), vinhos italianos (qualidade). Alguns até mudam de sentido no plural: liberdade, no plural, se transforma em ousadia, atrevimento.
``Não fica bem tomar liberdades com o candidato eleito."
2. Dos nomes usados só no plural, alguns nunca se encontram no singular: anais, calendas, cãs, esponsais, víveres etc. Outros, no singular significam coisa diferente: bem (benefício, virtude), bens (propriedade, valores); féria (renda diária), férias (descanso); matina (madrugada), matinas (hora canônica); pau (madeira), paus (naipe do baralho) e muitos mais.
Percebe-se que o real não se enquadra em nenhum desses casos excepcionais de singular/plural. É, portanto, um fenômeno tão raro quanto fraude eleitoral no Brasil e político mão-leve. Por que será, aliás, que eles se esforçam tanto para eleger-se, se gastam mais nas eleições do que receberão durante o mandato?, estranhou o ministro Sepúlveda Pertence (belo nome). É uma questão simples de fé na humanidade: porque são idealistas. Mesmo que tripliquem o salário, como querem agora os nobres senadores, nem de longe vão recuperar o que gastaram. Eles merecem. Amam o Brasil.
De volta ao real, nada há que justifique sua singularidade distraída, a não ser o fato de ele ter-se gravado com muita firmeza como singular por causa da campanha de implantação. Falou-se tanto em Plano Real durante alguns meses que a palavra fixou-se com força como singular. E o horário eleitoral –em que Fernando Henrique dizia ``Isto é real", e Lula, ``Vamos manter o real, porque temos de prestigiar nossa moeda"– contribuiu para fixar na memória do povo a imagem singular do poderoso real.
Na verdade, trata-se de uma volta do real, que já foi moeda portuguesa antiga e antiga unidade do sistema monetário de Portugal, Espanha e Brasil. Seu plural era réis.
Por coincidência, o real é unidade monetária e moeda da Arábia Saudita, da República Árabe do Iêmen, de Omã, do Irã e do Catar, que a Folha prefere grafar Qatar. No Brasil foi substituído pelo ``mil-réis" e suas moedas receberam nomes específicos como vintém (20 réis), pataca (40 réis) e tostão (100 réis). O cruzeiro e seus centavos tomaram o lugar dos mil-réis em novembro de 1942, no governo de Getúlio Vargas.
Depois veio o cruzeiro novo em 1967, de novo o cruzeiro, o cruzado, o cruzado novo, o cruzeiro de novo, o cruzeiro real, o real, o... Não. Agora esperamos todos que a nova moeda seja infinita enquanto dure, como disse o poeta. E que faça o dólar curvar-se, ajoelhar-se, arrastar-se diante de sua força. Mas que haja plural. Por que o real não pode ter plural como o dólar?
Em que o dólar é melhor do que o real?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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