São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 1994 |
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Compilação de árias reavalia Carlos Gomes
ARTHUR NESTROVSKI
A celebração dos 500 anos da Descoberta da América serviu de primeiro impulso, reafirmado mais tarde pelo interesse ``multiculturalista" de estudiosos e produtores, em busca de um gênio não-europeu (veja-se o caso da nova montagem do ``Guarani", encenada por Werner Herzog na Alemanha, com Plácido Domingo). A musicologia caminha, hoje, na direção de estudos históricos e políticos da música, com forte influência da desconstrução e do feminismo. Há ainda o fato de que o repertório tradicional já foi interpretado e gravado até em excesso, criando espaço para ``redescobertas" e reavaliações. Para a maioria de nós, Carlos Gomes permanece sendo o autor da ``Protofonia" do Guarani, motivo musical por muito tempo dessa exerescência radiofônica, desse resquício do regime militar, que faz calar a música todas as noites às sete horas, com a pretensão de expressar a ``voz do Brasil". Nada mais melancólico para a memória de um compositor do que se tornar o sinal do fim da música. Mas Carlos Gomes foi ainda mais comprometido com o regime do que Villa-Lobos –seu único rival no panteão da música brasileira– e há uma certa justiça tardia em fazê-lo pagar por isto. Nem a boa vontade dos musicólogos, nem o entusiasmo de alguns artistas foi capaz, até aqui, de alterar significativamente a opinião geral sobre o compositor. O consenso continua valendo: Carlos Gomes foi um bom melodista, sem ser grande dramaturgo; foi nacionalista em alguns libretos, mas quase integralmente italiano na música; mereceria ser mais ouvido, mas também não é nenhum Verdi, mesmo se se parece com ele. É com certeza um dos nossos melhores compositores. O que os musicólogos não conseguiram, foi feito, afinal, por um romancista. Depois de ``O Selvagem da Ópera", Carlos Gomes nunca mais será o mesmo. Pelas mãos de Rubem Fonseca, ele ingressa agora na galeria de espectros que dão volume à cultura. O brasileiro à procura de si na Europa, o selvagem que escreve óperas, o sensualista misógino, o endividado, o mau marido e bom pai: talvez isto não corresponda, ``de fato", ao que foi Carlos Gomes, mas isto não importa, porque agora ele é este ``Carlos Gomes", entre aspas, prisioneiro de uma outra obra, e através dela renascido para todos nós, com ressonância que ultrapassam a música. Não poderia ser mais oportuno, assim, o lançamento deste CD, reunindo gravações históricas de alguns dos maiores cantores do século interpretando árias de Carlos Gomes. Bidu Sayão, Lauri-Volpi, ou Assis Pacheco são extraordinários, mas talvez o disco tenha mais interesse musicológico do que propriamente musical. Metade das gravações é de qualidade muito precária e só um estudioso ouviria de uma sentada 4 versões de ``Sento una Forza Indomita", 4 de ``Quando Nascesti Tu" e 2 de ``C'era una Volta un Principe". Mas a intenção claramente é esta mesma: resgatar, ou ao menos registrar convenientemente uma tradição. Chama a atenção, por isto mesmo, um certo descuido no encarte. Não foi feita nenhuma indicação das orquestras e regentes, ou das circunstâncias de gravação (exceto a data). E curiosamente tanto a capa quanto o encarte mencionam uma gravação de Claudia Muzio, que não foi incluída no disco. O selvagem da ópera na certa tomaria isto por uma ``artimanha dos inimigos", para prejudicá-lo mas cometeria uma grande injustiça se não reconhecesse neste CD um passo decidido para a reavaliação do nosso maior –e até hoje o único– ``fabricante de óperas". Disco: Legendary Performers Sing Carlos Gomes Peças: Árias de ``Il Guarani", ``Lo Schiavo", ``Salvator Rosa" e ``Fosca" Intérpretes: Enrico Caruso, Beniamino Gigli, Bidu Sayão e outros Produção: William Daghlian Lançamento: Eldorado Texto Anterior: Escritor confunde os críticos Próximo Texto: Harvey Keitel vira pai viúvo em novo filme Índice |
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