São Paulo, quinta-feira, 20 de outubro de 1994
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Kiarostami explora espessura do tempo

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

A programação da 18ª Mostra de Cinema abre hoje com chave de ouro. ``Através das Oliveiras", último filme do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, que lhe valeu o prêmio Roberto Rossellini no Festival de Cannes deste ano, é a grande atração de hoje. Além do filme, a mostra apresenta, em datas ainda não-confirmadas, uma retrospectiva (veja quadro ao lado) do diretor, que também vem a São Paulo.
``Através das Oliveiras" parece, aos olhos dos ocidentais, um filme perdido nas malhas do tempo. Nos créditos que abrem o filme, com fundo musical extraído de ``Time" do Pink Floyd (uma canção do álbum ``The Dark Side of the Moon", de 1973), esta sensação de estranhamento já se impõe.
Mas a escolha até certo ponto ingênua esconde inflexões muito pouco óbvias. O fio da história que começa a ser contada se mistura com outros fios, remanescentes de outros filmes do diretor.
Uma equipe de cinema chega a uma região no norte do Irã, devastada por um terremoto, em busca de locações para realizar um filme. Na verdade, eles estão lá para fazer o filme anterior de Kiarostami –``E a Vida Continua..."–, que, por sua vez, também era uma busca, em meio às ruínas do terremoto, de dois meninos que haviam participado de outro filme –``Onde Fica a Casa de meu Amigo?".
Esta dobra dos filmes sobre si mesmos lança as narrativas de Kiarostami no domínio do tempo, um tempo espesso, a princípio insondável, mas capaz de expor suas inumeráveis camadas em consequência de um abalo sísmico.
É preciso estar atento ao que se passa e não se exasperar diante das inumeráveis repetições da mesma cena, justificáveis à medida que os atores não conseguem interpretá-la a contento.
A impotência dos atores tem como justificativa um conjunto de interdições –e aí se apresenta um olhar antropológico de Kiarostami sobre as tradições da cultura islâmica. Os intérpretes –atores amadores escolhidos entre a população do local– não conseguem dirigir a fala um ao outro porque um motivo tão forte quanto o desejo os mantém apartados.
Hossein ama Farkhondé, mas esta o repele porque ele é analfabeto. A atitude de Farkhondé transforma Hossein em vítima de um desejo intenso, que bloqueia todos os seus impulsos de aproximação. O filme que se prepara pode ser a chance para Hossein vencer as barreiras que o isolam da amada.
Este paradoxo do desejo, que oferece seu objeto e, ao mesmo tempo, o coloca fora do alcance traça uma narrativa na qual, surpreendentemente, o suspense se impõe. Aguarda-se incessantemente que Hossein vença a resistência de Farkhondé.
No fundo, há uma infinita indagação metafísica em ``Através das Oliveiras". A pergunta que as imagens de Kiarostami lançam ao espectador é: ``Como uma coisa acontece?". A impressão que se tem enquanto se assiste ao filme é a de que nada está acontecendo. Mas a que acompanha o espectador quando o filme acaba é a de que alguma coisa aconteceu. Sim, alguma coisa aconteceu. Mas como?

Filme: Através das Oliveiras
Direção: Abbas Kiarostami
Elenco: Hossein Rezai, Mohamad Ali Keshavarz
Onde: Grande auditório do Masp (av. Paulista, 1.578), às 21h.

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