São Paulo, terça-feira, 25 de outubro de 1994
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Mundo Livre leva cavaquinho para o rock

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

A banda pernambucana Mundo Livre S/A propõe uma nova linguagem para a combinação samba-rock. No CD ``Samba Esquema Noise", recém-lançado pela gravadora paulistana Banguela Records, o cavaquinho toca rock e a guitarra, samba.
O grupo, um quinteto sediado no bairro de Ilha Grande, no Recife, já tem dez anos de trajetória, mas só agora estréia em disco.
``Samba Esquema Noise" está na ponta do novo pop alternativo brasileiro, que começa a conquistar o mercado e chegar às paradas de sucesso (leia texto abaixo). As bandas recém-surgidas apostam na mistura orgânica de ritmos brasileiros e elementos do pop.
A contribuição do Mundo Livre S/A acontece em dois planos. No poético, sugere enigmas em linguagem coloquial. No sonoro, realiza uma fusão melódica, rítmica e harmônica do samba com o rock.
Antes da banda recifense, grupos como o carioca Picassos Falsos e o mineiro Virna Lisi –respectivamente nos anos de 1987 e 1992– misturaram os dois gêneros somente no setor percussivo. Usaram tamborins, pandeiros e tambores, mas não alteraram o efeito sonoro do rock.
O Mundo Livre sustentou um progresso lento, sem se influenciar pelas duas bandas.
``Valeu a pena esperar", diz Fred Montenegro, 32, conhecido pela alcunha de Zero Quatro, tirada do número de sua carteira de identidade: 2052304.
Zero Quatro é líder, vocalista, compositor, tocador de cavaquinho, guitarrista e poeta da banda. ``Já temos material para outros dois CDs", gaba-se.
São 50 composições, 30 delas integrando o repertório dos shows que Mundo Livre tem feito no Recife e em São Paulo.
O conjunto forma, ao lado das músicas do também recifense Chico Science, o cancioneiro do mangue-beat, gênero pop consolidado em 1991 no Recife cujo slogan é ``parabólica na lama".
Segundo Science e Zero Quatro, o mangue-beat consiste na junção do excesso de informação midiática com a miséria dos subúrbios recifenses, o pop de ponta com o folclore.
Zero Quatro prefere a grafia ``manguebit" (bit significa em informática unidade de informação) porque evita que o movimento seja identificado com uma batida (``beat", em inglês), como lambada ou pagode, e ir de dança do verão à sucata em pouco tempo.
O compositor oscila entre a análise rigorosa e a frase coloquial. Fala como o ex-jornalista de cultura que é (trabalhou em jornal e TV): ``Nossa estética toca o paradoxal. Reflete a diluição e a fragmentação do indivíduo e a perplexidade dele diante das tecnologias emergenciais. Mas, ao mesmo tempo, trai um isolamento. A gente fala de coisas como estar ligado e, no entanto, o que nos dá mais força é o fato de não estarmos tão ligados assim, de termos que correr atrás da informação. Temos ainda o folclore, mas não conseguimos sintonizar a MTV."
Uma situação semelhante à dos músicos de rock paulistas e cariocas dos anos 80, antes da abertura do mercado. Curiosamente, a maior fonte de material do grupo está nos LPs das bandas do ABC paulista dos anos 80 e nas primeiras coletâneas de punk. Além de, é claro, hip-hop, new wave e as obras completas de Jorge Ben e Moreira da Silva.
Zero Quatro toca cavaquinho desde menino. Daí seu amor pelo samba-de-breque de Moreira e o samba esquema novo de Jorge Ben. Adotou a guitarra no início da década passada.
Em 1982, fundou o núcleo do que viria a ser o Mundo Livre. Era a banda Serviço Sujo, de fé pós-punk, influenciada pelo ABC paulista. No ano seguinte, fundava a hardcore Câmbio Negro.
A banda apareceu no programa ``Fantástico" verberando contra o ambiente cultural da região. ``Falamos diante da câmera que Olinda só tinha hippie piolhento", orgulha-se Zero Quatro. ``Resultado: quase fomos linchados na praia."
A fundação da Mundo Livre, conta, se deu como resposta à reação da cidade contra os punks.
Passou por três formações. A segunda se deu em 1986, depois que um grupo de punks da Paraíba roubou instrumentos e aparelhos da banda, em represália a uma suposta ``traição ao movimento".
A atual formação se mantém desde 1992 e traz, além de Zero Quatro (vocais, cavaquinho e guitarra), o baterista Chefe Tony, o baixista Fábio, o percussionista Otto e o tecladista Bactéria –o mais novo, com 16 anos.
A banda tentou gravar um disco independente no Recife no final de 1993, mas o projeto foi abandonado por causa do convite da Banguela Records.
Ao entrarem no estúdio Be Bop em São Paulo, em março, para começar o disco, os cinco músicos carregavam os poucos instrumentos que possuíam: duas congas, um cavaquinho e um pandeiro. ``Tivemos que pedir emprestado", lembra Zero Quatro, que quer comprar uma guitarra na próxima semana. As gravações terminaram em junho. Foram 660 horas de estúdio, o triplo do tempo planejado no orçamento inicial da gravadora.
As sessões foram uma festa. Participaram do disco do percussionista Naná Vasconcelos à atriz Malu Mader, que estreou na música fazendo vocais na faixa ``Musa da Ilha Grande".
Segundo Zero Quatro, o CD fecha o ciclo do samba pop iniciado por Jorge Ben em 1963. Para isso, baseou-se no LP ``Tábua de Esmeraldas" (1976), de Ben.
``É um disco manifesto, difícil de enquadrar em um público ou estilo". Tanto que é impossível definir se se trata de um disco de samba ou de rock. Zero Quatro explica: ``É um samba em outra frequência, em outra linguagem."
Foi uma maneira, pensa o líder da banda, de levar o samba aos metaleiros e rappers e quebrar a fronteira entre MTV e rádio AM.
A banda não quer forçar referências à MPB em nome da moda. ``Queremos devolver para o cotidiano o que ele nos empresta e tocar em AM e na MTV ao mesmo tempo", diz o compositor.
Zero Quatro define a nova linguagem em duas frases: ``Jorge Ben começou a usar guitarra para fazer samba. Eu estou usando cavaquinho para fazer rock."

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