São Paulo, terça-feira, 25 de outubro de 1994
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Gus Van Sant chafurda no curral do pop

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Até filmar ``Até as Vaqueiras Ficam Tristes" (``Even the Cowgirls Get the Blues"), Gus Van Sant tinha realizado projetos pessoais –o que dava ao seu cinema uma intensidade, se não autobiográfica, pelo menos em direta decorrência de sua própria experiência.
Um cinema de autor no sentido mais americano do termo, onde autoria significa uma representação mais direta de seus próprios desejos e experiências.
Mesmo quando havia escracho e ironia sobre si mesmo e seus desejos –como nos ``diários filmados" anteriores a ``Drugstore Cowboy", onde o diretor falava de seus sentimentos diante da câmera, por vezes como um garotinho ingênuo– era sempre a criação de um universo muito pessoal, a partir de seu imaginário sobretudo sexual, que garantia a singularidade do autor.
Os problemas de ``Até as Vaqueiras Ficam Tristes", o filme, começam com a incompatibilidade entre os universos do diretor e do ex-jornalista Tom Robbins, autor do livro original, o ``cult" homônimo de 76 (lançado no Brasil pela Marco Zero), louvado por Thomas Pynchon e uma legião de fãs.
O universo de Gus Van Sant, mesmo sob o efeito de uma ironia tênue, é resultado de um certa inocência, uma espécie de ode aos seus próprios desejos. O livro de Tom Robbins também começa com uma espécie de ode, só que desta vez às amebas, à sua mobilidade e ``quase perfeita resolução das tensões sexuais".
Há uma diferença fundamental. Os dois têm visões divergentes dos mitos americanos. Na inocência de Gus Van Sant, em sua atração pelo pitoresco americano, há algo de trágico e melancólico. Já no imaginário pop de Tom Robbins, o humor é mais esfuziante e desenvolto. A vida é como um desenho animado e o mundo, povoado por personagens de histórias em quadrinhos. O lado farsesco e cômico de Robbins não se adequa ao sentimentalismo dramático que o cineasta cultiva mesmo quando a intenção é fazer rir.
Ao decidir adaptar o romance de Robbins, Gus Van Sant acreditou que podia construir todo o filme em torno de uma ``cumplicidade teórica": a idéia –defendida tanto no livro como ao longo da obra precedente do cineasta– da arte fazendo o elogio das alternativas (sexuais, de modo de vida), dos desvios, da mobilidade, das diferenças (a tese em que desvio é igual a liberdade, em que ``born freak" é igual a ``born free").
Era muito pouco. Gus Van Sant parece não se sentir à vontade para representar a história de Sissy Hankshaw, uma menina com polegares desproporcionais –o que a leva a uma compulsão pelas caronas e as estradas– cujo destino final é um rancho comandado por vaqueiras lésbicas.
Nesse universo pop, onde nada é levado muito a sério e a vida tem a dimensão dos ``comics", o diretor não consegue mais encontrar seu humor melancólico. Perde ao mesmo tempo a mão, a inocência e a experiência. E, se também perde com isso a sinceridade, não chega entretanto a ser cínico: se contenta em chafurdar no curral da burocracia.

Filme: Até as Vaqueiras Ficam Tristes
Direção: Gus Van Sant
Produção: EUA, 1994
Elenco: Uma Thurman, Angie Dickinson, John Hurt, Keanu Reeves
Onde: Belas Artes/Sala Portinari
Quando: hoje, às 16h

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