São Paulo, quarta-feira, 26 de outubro de 1994
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Por uma política para a pesquisa

SÍLVIA BRANDALISE

No momento em que o país inicia uma nova etapa de sua trajetória política, é natural que vários segmentos da sociedade venham a público expor suas aspirações. Isso faz parte e enriquece o processo democrático de uma nação.
Na condição de integrante de uma categoria estimada hoje em cerca de 50 mil profissionais e que tem a responsabilidade de contribuir para o avanço técnico-científico do Brasil, vejo este momento de renovação como uma grande oportunidade de dar à produção científica nacional seu devido valor.
Estou convencida de que, mais do que a falta de verbas ou de incentivos oficiais, o novo governo deverá encarar de frente um problema básico: o país não tem a cultura da pesquisa. Mas que ninguém se iluda. Isso não se resolve por decreto.
Temos um longo caminho a percorrer, pois essa falta de cultura de pesquisa manifesta-se praticamente no conjunto da sociedade.
Do lado do governo, não há como ignorar que os recursos financeiros destinados à pesquisa em ciência e tecnologia são muito inferiores aos de países desenvolvidos: cerca de 0,8% do PIB contra 3%.
Não basta, porém, olhar a questão apenas por esse ângulo. A mudança cultural que se pretende exige que a pesquisa seja vista como fator essencial ao desenvolvimento do país e contribuição para o futuro da humanidade.
Um passo importante é estabelecer uma política coerente de dotação orçamentária, que privilegie hospitais, universidades e instituições com maior e melhor produção científica. Por que não classificar os hospitais como centros de referência, a exemplo do que ocorre no exterior?
Aparentemente parece simples, mas todas as vezes em que se tentou aplicar esse modelo no Brasil esbarrou-se numa prática infelizmente ainda comum em vários setores: confundir atividade médica com atividade política.
Por que não promover médicos em função de suas pesquisas? Na Europa e nos Estados Unidos, os médicos recebem promoções de acordo com trabalhos publicados. E isso é, sem dúvida alguma, importante fator de estímulo.
Mas a nossa realidade não é favorável: o pesquisador brasileiro, que trabalha em universidades e institutos públicos, além de muito mal remunerado, não tem uma atividade reconhecida.
Daí, a constatação de um estudo recente feito pelo Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior da Universidade de São Paulo: 47% dos pesquisadores em universidades brasileiras não pesquisaram nada nos últimos anos ou guardaram segredo de suas descobertas.
Das 5.000 publicações catalogadas pelo Instituto para Informações Científicas (ISI), apenas três são brasileiras, o que nos coloca em uma posição pouco honrosa: trigésimo lugar no número de artigos publicados.
Não podemos atribuir isso apenas a uma eventual má qualidade dos trabalhos ou a uma baixa produção. Mais uma vez o peso maior é cultural.
E esse peso é tanto e tão arraigado que se reflete até na formação dos futuros graduandos. Grande parte dos professores é jovem e também não recebeu uma orientação voltada para a pesquisa. Assim, fica difícil romper esse círculo.
A USP, consciente desse entrave, tem chamado de volta para os cursos de graduação pesquisadores com mais tempo de atividade. A solução, no entanto, não é esta. É preciso formar toda uma geração dentro de novos valores referentes à pesquisa.
A mudança tem de envolver também a população em geral. Hoje, o conceito que ela faz dos hospitais de universidades que realizam pesquisa clínica é negativo: algo como "lá a gente é cobaia". Quando, ao contrário, em outros países, instituições do gênero são requisitadas e valorizadas pelo alto nível de sua equipe de pesquisadores e clínicos.
A iniciativa privada não pode ficar fora desse processo de mudança cultural. E sou testemunha de que essa participação é importante para somar esforços.
Como pesquisadora, acabei de avaliar parte dos trabalhos inscritos no Prêmio Roche à Pesquisa –um número de inscrições, aliás, surpreendentemente alto em relação à primeira edição do prêmio, o que revela, no mínimo, que os pesquisadores estão buscando novas fontes de estímulo.
A qualidade das pesquisas a que tive acesso comprova: quando há incentivo, a boa produção aparece. Outras iniciativas do gênero seriam bem-vindas e apoiadas pela comunidade científica.
Ao novo governo não pedimos muito. Pedimos apenas que tenha vontade política e disposição para investir em uma área que não lhe renderá, pelo menos de imediato, pontos favoráveis nos índices de popularidade. Mas, certamente, colocará o desenvolvimento científico do país em um novo patamar.
SÍLVIA REGINA BRANDALISE, 50, é coordenadora do Cipoi (Centro Integrado de Pesquisas Oncohematológicas da Infância) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e fundadora do Centro Infantil de Investigações Hematológicas dr. Domingos A. Boldrini (Campinas-SP).

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