São Paulo, quarta-feira, 26 de outubro de 1994
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Miles Davis e o fusion ressuscitam com a veneração de Marcus Miller

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O jazz só apareceu no Free Jazz anteontem, justamente na noite mais ``mandrake": a do ``crossover", gênero em que cabe tudo.
O violonista carioca Guinga tropeçou nas complexidades harmônicas que inventou para si mesmo. Em compensação, o octeto do baixista Marcus Miller salvou o continente jazzístico num show em que mortos ressuscitaram. Nem o ímã de geladeira do Al Jarreau obnubilou o espetáculo.
Guinga é saudado pelo livreto do festival como ``o mais original compositor brasileiro surgido na década de 90". A década, porém, ainda não terminou, e Guinga, surgido nos anos 70, precisa tomar aulas de harmonia e arranjar letristas menos chatos.
A melodia guinguiana é inventiva, cheia de saltos e cromatismos. Um som paradoxal, já que erudito e imaginado por um dentista.
O septeto, chefiado pelo compositor ao violão, exagerou nos efeitos fáceis. Os três sopros (clarineta, clarone, sax e flauta) fizeram tudo para aparecer. Guincharam à vontade. O piano chorava.
Todos erravam pelas más soluções harmônicas. Guinga parece ser capaz de tudo, até desafinar, em troca de uma modulação. Ele não revoluciona porque hesita e se perde na malha das possibilidades. Se for mais fundo e trocar de parceiros (a letra de ``Saci", de Paulo César Pinheiro, atravessa mais nas metáforas do que Guinga no círculo de quintas), o músico pode aspirar à grandeza anunciada.
Surpreendente foi o show de Miller e amigos. Ao longo de duas horas e meia, o baixista fez dois mortos levantarem: o trompetista Miles Davis (1926-1991) e sua criatura, o fusion.
O baixista demonstrou que a arte de Davis possui uma coerência e um classicismo obscurecidos pelo marketing da sua fase terminal, popeira e rappeira.
Miller virou o representante de Miles na Terra e faz questão de ostentar o sumo-sacerdócio. Sua banda imita cada inflexão do mestre. Os standards de ``São" Miles se converteram em oração.
Foram sete longas excursões pelos estilos de Miles. Tudo ganhou forma de constelação. A fase cool do início da carreira (com seus refrões miúdos e rápidos) se uniu ao fusion final, rítmico e quase nu de temas melódicos.
Miller mostrou-se avesso ao virtuosismo. Percorreu as trilhas do mestre com veneração de discípulo dileto. Dialogou (ou salmodiou) com o saxofonista Kenny Garrett, que, como ele, tocou com Miles. Miller presidiu o funeral do fusion. E que funeral. No estilo, nunca existiu coisa melhor.

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