São Paulo, sexta-feira, 28 de outubro de 1994
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Engajamento explícito transforma `A Peste' em libelo contra injustiça

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

Filme: A Peste
Direção: Luis Puenzo
Elenco: Raul Julia, William Hurt, Robert Duvall, Jean Marc Barr
Quando: estréia hoje nos cines Belas Artes (sala Aleijadinho), Arouche A e Ipiranga 2

``A Peste", filme de Luiz Puenzo que estréia hoje, é uma tentativa de dar atualidade às metáforas históricas criadas pelo escritor Albert Camus (1913-1960).
O romance ``A Peste", publicado em 1947, era uma alegoria da Europa ocupada pelo nazismo. Camus, porém, havia tomado o cuidado de não limitar suas alusões literárias à Segunda Guerra, fazendo da obra uma interpretação de qualquer outro flagelo histórico.
É justamente esse princípio artístico que o argentino Puenzo viola. Assim, a cidade argelina de Oran, na qual se passavam os fatos inverossímeis do romance, é transposta para a tela como uma cidade fictícia da América do Sul, na qual se reconhecem as ditaduras do Terceiro Mundo.
O enredo do filme é basicamente o mesmo de Camus: a cidade, assolada pelo bacilo da peste, compõe um cenário em que homens como o médico Bernard Rieux (William Hurt) e Joseph Grand (Robert Duvall) descobrem a necessidade de uma solidariedade histórica contra o Mal.
Entretanto –e por paradoxal que possa parecer–, o fato de o filme dar uma conotação política explícita a essa ``resistência" acaba por esmaecer a eloquência de um engajamento acima de tudo espiritual.
Em Camus, a chegada da epidemia à cidade tinha dimensões trágicas: a civilização sempre poderá despertar os demônios e perder o governo de seu destino.
No filme de Puenzo, a cidade, isolada pela peste, oferece a oportunidade para que um governo militar instaure uma burocracia discricionária.
Essa opção do roteiro dá margem a soluções questionáveis. No romance, por exemplo, o jornalista Rambert vive um dilema entre deixar a cidade e tornar-se voluntário na luta contra a doença.
No filme, transforma-se numa personagem feminina (Sandrine Bonnaire), que é entregue a misteriosos órgãos de repressão pelo escroque Cottard (Raul Julia) –trama inexistente em Camus.
Mas não são estas infidelidades ao texto que fazem as deficiências de ``A Peste". O problema é que, Puenzo diminui os conflitos filosóficos do romance, cuja grandeza estava justamente no caráter atemporal, mítico, de seus conflitos.
Obviamente, a luta contra injustiça sempre provoca algum tipo de emoção. No caso de Puenzo –que também dirigiu ``A História Oficial"–, essas possibilidades dramáticas se expressam na necessidade de abdicar da felicidade privada quando ocorre uma catástrofe coletiva.
``A Peste" é, no máximo, um digno retrato da luta contra o infortúnio, e não o libelo metafísico no qual se baseia.

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