São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Versos rarefeitos pintam azulejos poéticos

ANTONIO DE FRANCESCHI
ESPECIAL PARA FOLHA

Advirta-se o leitor, desde logo, que se deve começar a ler este livro pela capa. Mais exatamente pelos azulejos da capa, reunidos pelo artista gráfico Ettore Bottini, num lance feliz, de modo a representar um símile visual do que virá a seguir: 25 poemas de extensão igual, formando um conjunto que os espelha e transcende.
O privilégio a essa arquitetura regular, cerrada, permite supor, transpondo-se a fórmula leonardesca, que a poesia para Fernando Paixão ``è cosa mentale". Há igualmente indícios de que a experiência do poeta como editor tenha-lhe valido, decisivamente, na concepção do livro.
O resultado é um calculado equilíbrio entre a forma e o fundo e entre a parte e o todo, que assinala a singularidade de ``25 Azulejos" no quadro da poesia brasileira atual.
A construção do livro orgânico, aliás, não é proposta nova para Fernando Paixão. Ela estava presente já em ``Fogo dos Rios" (Brasiliense), quando a glosa poética dos 126 fragmentos de Heráclito proporcionou-lhe o primeiro desafio de conformar a obra a um projeto. A proposta ali era dialogar com um interlocutor distante (a edição não incorpora o texto do filósofo grego), mas cuja ausência não comprometesse a autonomia do poema.
A fórmula? Não existe, certamente, fora da ampla liberdade e da qualidade da dicção com que o poeta comentou o objeto ausente, embora fiel sempre –em tom e intensidade– ao enigma contido no ``corpus" heraclitiano. Tanto é assim que os poemas podem ser lidos sem perdas à vista ou não do texto, ou pretexto, que lhe deu origem.
Mas param aí as semelhanças substanciais entre os dois livros. Sobretudo porque ``25 Azulejos" é uma reunião de poemas que, apesar da forma comum fixada em onze versos, apresenta grande diversidade. O próprio poeta o diz em ``Desassossego": ``Os livros de poetas formam nuvens/ geométricos/ vapores enfileirados na estante", onde o formalmente regular (geométrico) é usado como atributo do diverso e sempre irregular (nuvens, vapores).
Aqui, a diversidade é dada pelo verso livre e pela dispersão temática do conjunto, que vai dos retratos (Sá-Carneiro, Maiakóvski, Aleijadinho), aos desenhos de animais (serpente, urubu), a registros topográficos (ilha, Graal) e até o belo metapoema final, ``Azulejista", que resume o livro ``pedaço a pedaço/ pelas mãos do azulejista", onde ``a parede crua desaparece lenta/ submetida ao capricho/ de uma pele de esmalte e infinito".
O que caracteriza essa fala é a recusa à ênfase e à ``protagonização" pessoal. Como também uma tensão-limite, agônica, que envolve os poemas em atmosfera rarefeita, sem facilidades de acento e ritmo. Fragmentárias, suas alusões não fixam nem recortam, antes sugerem, com um mínimo verbal, um campo de possibilidades.
E mesmo onde se supõe confissão, o tom que predomina é impessoal, como se o sujeito lírico aliviasse a angústia, a dor de ser, na alteridade de um terceiro que observa: ``abraça a mulher seu homem/ ...os dois se dobram para entender/ os murmúrios domésticos" (``Gravura"). Ou no registro anônimo: ``Um dia apareceremos leitor/ nas estatísticas/ catalogados em ocorrência policial" (``Retrato").
Fernando Paixão sabe, como Auden, que ``um poema contemporâneo que eleve sua voz soará falso"; por isso calibra o canto sem afetação. Pode parecer perda para quem traz ``pathos" no próprio nome, mas é ganho certo para a poesia.

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