São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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O Indiana Jones da medicina

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Terry Fredeking, um sujeito gorducho de 47 anos, e Robert Dean, um diplomata aposentado de 74 anos, vão tentar capturar em novembro, em nome da ciência médica, um dos animais mais perigosos da Terra: o dragão-de-komodo.
Trata-se de um lagarto carnívoro de uma ilha da Indonésia que pode pesar até 150 kg, medir três metros de comprimento, correr rapidamente e até subir em árvores.
Os dois esperam atrair o bicho para uma jaula, amarrá-lo, suspender a jaula e colocar uma bacia para coletar sua saliva. Também querem retirar amostras de sangue de sua cauda.
"Esse animal nunca pega infecções bacterianas e os pesquisadores querem estudar se há algo no sangue que pode ajudar a fazer um novo antibiótico", disse Fredeking à Folha, por telefone, de seu escritório em Bedford, Texas. Dean também participou da mesma entrevista.
Fredeking é um especialista raro: um coletor de proteínas exóticas em animais igualmente, em geral no Terceiro Mundo mas também em antros de drogados ou bordéis em seu próprio país.
Sangue é o principal interesse desse Indiana Jones da biodiversidade, como já foi descrito em pelo menos dois programas de televisão nos EUA. Fredeking já foi tema de reportagens em boa parte do mundo anglo-saxão, incluindo o mais famoso jornal econômico americano, o "The Wall Street Journal".
Ele adora seu trabalho e gosta de realçar com humor os perigos que enfrenta: "Os dragões-de-komodo estão no topo da cadeia alimentar na ilha, não têm medo de nada. Se você sobreviver ao ataque de um deles, o que não é muito comum, você morre em 48 horas de infecções bacterianas das bactérias que eles carregam na boca".
Outra saliva que ele coletou foi a de morcegos vampiros no México. Como ele fez isso? "Ensinamos eles a mascar tabaco, pagamos umas Budweisers e eles saíram cuspindo", declara rápido, rindo, em alusão a um hábito comum nos EUA.
O verdadeiro método também tem seu lado engraçado. Para fazer os morcegos salivarem, a equipe da Antibody Systems deu a eles a mesma droga que os dentistas dão a pessoas com novas dentaduras, que dificultam a salivação nos primeiros tempos.
A operação teve seus riscos. "É perigoso, porque esse morcegos têm o vírus da raiva", diz ele. "Temos que ter todo tipo de licença para trazer isso para os EUA, precauções especiais, contêineres especiais".
Nas cavernas dos vampiros também havia um fungo causador de uma doença letal e restos de um gás venenoso usado pelos mexicanos para matar os vampiros.
Presidente da empresa Antibody Systems (Sistemas de Anticorpos), ele procura pelo mundo já faz cerca de 15 anos tanto sangue com contaminações variadas para pesquisas com vacinas como secreções de animais peçonhentos ou parasitas.
Os dois andam pela mata com frascos criogênicos, equipamento para congelar o material, com gelo-seco. "Algumas proteínas não duram mais que alguns minutos fora do corpo. Para o sangue temos que usar glicol, que preserva as células durante o congelamento para as células não explodirem", dizem.
Apesar de não ter formação científica, Fredeking ajuda tanto os cientistas que um grupo de pesquisa de um instituto suíço o colocou como co-autor de um artigo científico publicado na revista especializada "The Journal of Infectious Diseases".
Brasil
Nos últimos anos, os laboratórios têm percebido que a guerra química que as várias espécies de animais e plantas empregam na natureza pode ser uma fonte de novos medicamentos.
As descobertas do cientista brasileiro Sérgio Ferreira, com veneno de cobra, por exemplo, serviram de base ao medicamento Captopril, para tratar pressão sanguínea alta. Ferreira, porém, não recebe royalties pela sua pesquisa, divulgada publicamente.
Os países do Terceiro Mundo estão cada vez mais preocupados com essa exploração de sua biodiversidade. Esse é o papel de Robert Dean na empresa: acertar a papelada burocrática.
"Antes de ir, eu checo com a embaixada dos EUA nesses lugares e entramos em contato com as autoridades locais, para que nada do que fizermos seja considerado suspeito ou ilegal", diz Dean. "Temos que deixar tudo claro antes".
Dean, cuja mulher é brasileira, foi diplomata por vários anos no Brasil, tendo trabalhado em São Paulo, Brasília, Belém e Rio de Janeiro. Também foi embaixador no Peru.
A saliva de morcego, por exemplo, serviu de base para uma indústria farmacêutica desenvolver por engenharia genética um novo medicamento anticoagulante. Há nela uma proteína que facilita ao morcego chupar o sangue da vítima sem que ele coagule demais.
Outra proteína recente foi o veneno de uma cobra da África do Sul. Geralmente a dupla emprega pessoal local para ajudar nas coletas (quando precisaram de sanguessugas empregaram as próprias pernas de Fredeking e de meninos mexicanos como isca).
"Eles realmente acham que nós somos loucos, não há dúvida, eles acham que nós somos absolutamente pirados", ri de novo.
Na África do Sul ninguém se dispôs a ajudar na coleta da pequena cobra de alguns centímetros, porque ela consegue picar a mão da pessoa que a segura na posição tradicional de extração de veneno, pela cabeça.
Para tirar esse veneno se precisou uma certa engenhosidade, finalmente fornecida por um médico local. A cobra foi colocada dentro de um tubo para que não pudesse picar por trás.
A cobra vive em cupinzeiros e formigueiros mas não come as formigas ou cupins, e sim as lagartixas que vem comer os insetos.
O veneno dela abaixa a pressão do sangue e mata a lagartixa. O veneno é outra fonte potencial de uma nova droga que abaixa a pressão do sangue.
A dupla não precisou coletar muitas cobras. Em compensação, certa vez a empresa foi contratada para arranjar dez mil aranhas viúvas-negras.
Diabo-da-tasmânia
Outro bicho perigoso foi um carnívoro australiano, o diabo-da-tasmânia. Desta vez o interesse era um parasita que apenas infecta o diabo-da-tasmânia, e apenas encontrável no animal em estado selvagem.
O parasita, Trichinella pseudospiralis, secreta uma substância que poderá ser útil em transplantes pela sua capacidade de enganar o sistema de defesa do organismo, "Se essa substância mascara o parasita também pode mascarar um órgão", diz Fredeking.
As viagens da dupla pelo Terceiro Mundo também têm os riscos inerentes à região. Estiveram em um hotel na América Central que foi vítima de um ataque de guerrilha.
"Quando você está na selva procurando uma droga, você tem que deixar claro a definição de droga em que você está interessado", declara Dean.
Coletar o sangue de viciados em drogas injetáveis ou prostitutas é outro ramo de trabalho. Fredeking mais uma vez brinca, dizendo que tem que alugar o corpo da mulher, mas não da forma tradicional.
A Antibody Systems também tem intercâmbio com instituições de pesquisa e hospitais nos quais a coleta é mais simples. Por exemplo, eles querem testar vacinas contra hepatite A com o pessoal da Santa Casa de Santos.
Eles pretendem vir ao Brasil provavelmente no ano que vem. Entre as missões poderá estar a coleta de sangue contaminado com doença de Chagas devido a restrições legais nos EUA.

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