São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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O preço da verossimilhança

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

Até onde foi possível acompanhar, as críticas e artigos sobre ``Forrest Gump" passaram ao largo da mentalidade politicamente correta que permeia o filme de Robert Zemeckis. Seria o caso de esquecer os dois assuntos, o filme e a mentalidade, já exaustivamente comentados, não fosse minha impressão de que são intimamente conexos; mais do que isso, que ``Forrest Gump" é talvez a primeira obra-prima do cinema americano a serviço dessa mentalidade e que, ao realizar-se, o filme a transcende e se emancipa dela.
Gump é um deficiente mental, ou algo próximo disso. Na infância, sofreu também algum tipo de deficiência física, agravada por um médico inepto, aliás fumante, que o obriga a usar os aparelhos dos quais se liberta, mais tarde, numa cena radiosa. A deficiência repercute no episódio com o governador Wallace, que teve a coluna danificada por tiros, e na amputação das pernas do tenente Dan, num hospital de Saigon.
O problema racial aponta com os Ku-Klux-Klan de Griffith, resvala novamente no político racista que Wallace foi e se distende ao longo do filme no personagem do recruta Bubba, uma espécie de Forrest Gump negro, ingênuo, obsessivo e mentalmente limitado como seu alter-ego branco. Só não há racismo entre os tolos –essa é uma das contradições sugeridas num filme repleto delas e que se credencia, em termos artísticos, como ressaltou Marcelo Coelho, pela fecundidade das suas ambivalências.
Deficientes; vítimas do racismo ou de molestamento sexual, como a menina Jenny; aidéticos (pois é evidentemente esse o ``vírus desconhecido" que aparece no final): por baixo do sentimentalismo abertamente apelativo de ``Forrest Gump", identificamos as pegadas de um vulto conhecido. Esse humanismo compulsório, essa igualdade por compartimentos, essa nova conquista do Eufemismo é o que se resolveu chamar de mentalidade politicamente correta. Ela é legatária dos movimentos de contestações dos anos 60 e 70, mas nem por isso devemos estranhar que o filme revele a Contracultura sob um ponto de vista negativo e ridicularizante.
O atual movimento de afirmação das ``minorias de poder" resultou da confluência entre a Contracultura e valores tradicionais numa sociedade protestante; melhor dizendo, é o produto das metamorfoses que a Contracultura sofreu conforme era absorvida pelas instituições e passou a predominar na universidade, na mídia, no judiciário e já agora na própria administração pública. Separou-se no processo o joio do trigo: revolução, socialismo, drogas, fumo e sexo livre ficaram de fora; os impulsos generosos de liberdade e igualdade dos anos 60 foram institucionalizados e se tornaram um cânone ríspido e vigilante, macartista nas censuras mentais que estabelece.
Não por acaso, os dois episódios históricos que deram margem a essa transformação aparecem em ``Forrest Gump". Da massa de celulóide rodado sobre o Vietnã os realizadores plasmaram a sua guerra a partir de dois filmes, a saber, ``Apocalypse Now" (Coppola, 1979) e ``Platoon" (Oliver Stone, 1986), que correspondem, respectivamente, à chegada de Gump no litoral vietnamita e ao combate do qual sai como herói. O outro episódio é o caso Watergate (1972-74), também glosado no filme.
A derrota militar na Ásia e a deposição de um presidente acusado de banditismo debilitaram todas as defesas ideológicas, abrindo mais um dos ciclos de culpa e expiação pública, típicos da formação protestante do país e dos quais a Lei Seca é o exemplo apenas mais conhecido. Ocorre então com a nicotina e o colesterol o que já ocorrera com o álcool; há uma volúpia de depuração corporal, de retorno a uma pureza originária. Tais fantasias de retorno são estimuladas não só pelo fundamentalismo religioso mas também político, que formam, no caso, literalmente duas faces de uma mesma moeda.
Porque a ``mensagem" dos fundadores dos EUA, embora abstrata, é de tal modo radical que se presta, luteranamente, a periódicas voltas ao mito de origem. Nessas oportunidades, conteúdos recentes e protagonistas reprimidos (étnicos, feministas e homossexuais, por exemplo) encarnam o evangelho emitido há 200 anos e se fazem porta-vozes atualizadores dele. No código genético, por assim dizer, da Constituição americana, não menos do que na Bíblia, está incrustado o mecanismo que permite absorver a inovação, sem sobressaltos mais graves, dentro da estabilidade.
Num de seus artigos na ``Ilustrada", Arnaldo Jabor se insurgiu contra tudo o que há de idiotizante, conformista e reacionário em ``Forrest Gump" e acho que ele tem razão, embora preferisse insistir nas ambivalências do filme, que a meu ver permitem leituras mais multifacetadas do que a de Jabor. Na cena, por exemplo, em que Gump e Jenny se encontram no espelho d'água, todo o inconformismo da manifestação pacifista em redor de repente se mostra convencional, tão intenso e livre, tão anos 60 é aquele abraço entre a garota hippie e o rapaz fardado.
Não que possa haver dúvida quanto aos propósitos comerciais do filme, nem quanto às técnicas implacáveis de que o roteiro lança mão, em seu revisionismo aliciante, para manipular os sentimentos mais fáceis da platéia e purgá-los numa catarse de lágrimas. Multidões fazem fila nos cinemas sabendo que vão encontrar exatamente o que querem, essa catarse, que as atrai como o mel às moscas. Os truques são odiosos e se repetem um após outro, como por exemplo quando a máquina do roteiro, antes de revelar a mutilação do tenente Dan, para aumentar o choque da surpresa dolorosa mostra Gump que vem alegremente trazer-lhe um sorvete.
Há um aspecto especialmente odioso e quem vir o filme mais de uma vez poderá verificá-lo com facilidade. É que praticamente todas as falas de Forrest Gump têm duplo sentido: podem ser tomadas como idiotice ou sabedoria. ``Quem você quer ser na vida?", pergunta Jenny. Gump: ``Mas eu não vou ser sempre quem sou?" ``Você já encontrou Jesus?", pergunta o tenente. Gump: ``Não sabia que eu deveria procurá-lo". E assim por diante. Na esteira do sucesso alcançado pelo filme, o autor do livro que lhe deu origem, Winston Groom, lançou uma antologia de frases que reúnem ``a graça e a sabedoria de Forrest Gump", já um best-seller.
Gump é ingênuo, vulnerável etc mas muito menos idiota do que parece, o que facilita uma identificação, da platéia com o protagonista, que seria muito mais trabalhosa caso ele fosse o que à primeira vista é. Uma das ``teses" do filme, aliás, é a de que os feitos e as descobertas geniais deitam raízes na experiência de homens comuns, anônimos como Gump, idéia que remonta a uma linhagem imponente (Vico, Michelet, Emerson; no próprio cinema americano, Capra), paralela à genealogia literariamente ilustre do personagem (o bobo de Lear, Cândido, Frankenstein, Kaspar Hauser, o Homem-Elefante).
Já vimos o que ``Forrest Gump" fez com os preceitos da mentalidade politicamente correta: o filme os emprega como moldura e alavanca para expressar algo que está muito além, mais ou menos da maneira pela qual, em outra escala de grandezas, um pintor como Rafael age em relação ao catolicismo, transfigurado em seus quadros. Já se disse que obra de arte não combina com boas-intenções e em certo sentido pode-se afirmar que as intenções do verdadeiro artista são sempre as piores possíveis.
Ele precisa atuar com frieza de gelo, maquinando o que melhor convier à consecução interior de seu trabalho, desvencilhando-se de preocupações políticas, morais, religiosas, mercadológicas ou pessoais como de meros estorvos colocados por um demônio sabotador entre ele e seu objetivo. Nossa época está corrompida, entretanto, pelo transbordamento de experiências, pela quantidade abusiva de entretenimento; já vimos e ouvimos de tudo, já não conseguimos manter uma atitude de ``suspensão da descrença". A resposta do filme para este problema é situar-nos no ponto de vista de um deficiente.
Então assistimos a tudo pela primeira vez. Os sentimentos voltam a ser inaugurais, as imagens ressurgem frescas e inéditas, estamos aptos a tomar cada coisa de novo ao pé da letra. Esse deslocamento inesperado, um truque baixo, restitui à platéia a sua condição virginal, perdida há muito tempo na anfetamina de tantos Rambos e Schwarzeneggers. Mas que sacrifícios foi necessário fazer, ao mesmo tempo, para que as platéias viciadas do nosso tempo engulissem o xarope sentimental de ``Forrest Gump"!
Um desfecho infeliz aguarda cada uma das pessoas emocionalmente ligadas a Gump, com a exceção do tenente Dan que, mesmo assim, nunca vai se recuperar das sequelas da guerra. O próprio herói tem uma trágica consciência de que sua limitação –redimida afinal, na loteria biológica, pela ``normalidade" do filho– é intransponível. Para se dar ao luxo das suas pieguices, o filme em compensação é obrigado a prodigalizar horrores, mutilações, insuficiências definitivas. Tal é o preço de verossimilhança hoje em dia.
O saldo no entanto é que, ao sair do cinema, sabemos que fomos tocados por uma espécie de graça; vagamos a esmo deste compromisso àquele, tropeçando nas coisas e nas pessoas, como se estivéssemos seguindo os volteios daquela pluma ou o fio invisível que une destino e acaso, o mesmo fio que Forrest Gump encontrou em sua vida, mas ele desaparece para nós depois de duas ou três horas. Não se pode pedir mais a um filme, nem mesmo a uma obra de arte.

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