São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Cartas na mesa

Quatro meses depois do seu início, a estabilização econômica vê-se afetada por dúvidas fundamentais. O mínimo que se pode dizer é que a euforia inicial já não é a mesma. O governo toma medidas duras para salvar o plano, mas, paradoxalmente, o próprio semblante preocupado do médico pode assustar o paciente e dificultar a cura. Terá o remédio chegado a tempo?
O quadro complica-se quando se vêem os ``médicos", a equipe econômica, prescrevendo intempestivamente remédios contraditórios.
Ora se contrai o crédito, ora se alargam sem peias os limites de emissão de moeda. Ora se castigam os produtores com a alta dos juros, ora se lançam medidas tópicas que tentam aliviar onde possível o desestímulo à produção. Fala-se numa revolução no Estado, mas ouvem-se sugestões de vida longa ao IPMF ou outro arremedo fiscal.
O governo aposta num modelo de ajuste em que as importações ajudariam a suprir o mercado interno. Mas ainda não conseguiu transmitir segurança quanto à estabilidade do câmbio. A âncora flutua. As regras mudam sem prévio aviso.
No centro de tanta azáfama, ressurge uma temerosa aceleração inflacionária. Há pouco mais de um mês a taxa estava abaixo de 1%. As previsões têm sido superadas a cada semana e o próprio ministro da Fazenda já admite os 3% como fato irreversível ao final de outubro.
São taxas baixas face aos quase 50% mensais pré-real. Mas são altas o bastante para repor em cena o risco de reindexação da economia.
Reindexar significa criar mecanismos que, se de um lado protegem contra a inflação, de outro a tornam inflexível à baixa. O Plano Real desindexou em grande parte a economia ao proibir contratos com reajuste em prazos inferiores a um ano. Trata-se de ``wishful thinking": se a inflação é baixa, o reajuste contínuo torna-se desnecessário. Mas não há como não reindexar, mesmo que informalmente, se a inflação for insuportável.
Já ocorrem antecipações salariais em inúmeros setores. Os salários vão também aos poucos, e por lei, incorporando a variação do IPC-r. As pesquisas de preços mostram não só altas localizadas ou sazonais (caso da carne ou do vestuário), mas também reajustes mais frequentes e generalizados em serviços, aluguéis, mensalidades escolares, produtos de higiene e limpeza.
O momento é delicado. As cartas estão espalhadas sobre a mesa. Resta saber se são as cartas de um castelo construído em bases frágeis ou se o governo e a sociedade entenderão que até agora tratava-se apenas do primeiro lance de um jogo longo, difícil e cansativo.
Na primeira hipótese, haverá rapidamente frustração e pânico. Já o cenário otimista, para vingar, depende de se reconstruir o quanto antes a confiança nas regras do jogo. É a condição para que todos afinal saiam ganhando.

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