São Paulo, terça-feira, 1 de novembro de 1994
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O Rio de sangue será o trailer do Brasil

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

E u sou o começo de uma nova era. Vocês não entendem que eu sou um sinal? Vocês nunca me olharam durante décadas. Me odiavam porque eu sou sujo, feio, pobre. Sempre me rasparam de suas consciências, como hoje querem me raspar pelas balas. Hoje eu sou o início de vossa consciência social.
Eu era sujo e feio, mas era inofensivo; uns roubos, uns assaltos, mas tudo bem. Eu me lembro que os bandidos chegaram até a ser famosos; vocês até os romantizavam, como o "Mineirinho" ou o "Cara de Cavalo". Vocês nos pintaram de dourado, criaram o mito da "favela dos meus amores", "Mangueira teu cenário era uma beleza", tudo na época em que era fácil resolver o problema. Há 30, 40 anos era mole sanear, criar comunidades. O diagnóstico era óbvio, sempre se soube: migração rural, fim da capital federal, ausência de uma infra-estrutura industrial etc e tal.
A solução é que nunca vinha. Mas, nesta época, ainda era fácil. Vocês tiveram os mendes de morais, os lacerdas, os negrões de lima, os chagas freitas, os moreiras, os brizolas e que fizeram? Nada. Absolutamente nada. Nunca ninguém olhou uma favela. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nunca. Nós não existíamos. Quando os ratos nos atacavam de noite, nós não existíamos; quando morríamos de fome, de chuva, desabamentos, éramos, no máximo, um motivo de manchetes de jornais (vendem muito) e de angústia para intelectuais mais sensíveis.
Mas planos, administração, urbanização eram muito chatos. Danem-se os favelados. No máximo, chegamos a ser problemas existenciais para os bacanas que suspiravam quando viam nossas criancinhas pedindo esmola no sinal (eu estava lá). Nós éramos o "seu" problema existencial. Agora, vocês estão em pânico porque estamos armados. Porque agora somos maus.
Deixamos de ser um problema moral e descemos o morro. Temos AR-15, AK-47, Uzis, somos fantasmas armados. Aí o pessoal se toca e fica em pânico: "Meu Deus, o que vai acontecer com o Rio, Deus do céu, cidade tão linda! Ai, ai!". Pois dane-se o Rio. Vocês se preocuparam alguma vez conosco? Nunca.
Chegaram a tímidos movimentos idealistas de "mobilização pela cidadania". E a grana? Cadê? Cadê os bilhões de dólares hoje necessários para uma solução profunda? Deviam era criar um Ministério do Rio para sanear as favelas. Isso não rolou nunca e não rola ainda. Não dei a mínima para os movimentos de cidadania. Quero planos e verbas. Nós não somos nem bairros, nem sobe correio aqui; luz é gatilho, água é gatilho, e vocês agora estão com medo. Danem-se.
Agora estamos todos unidos, irmãozinhos, unidos no centro do "insolúvel", nós do mal e vocês do bem. Vocês não sabem o que é o concreto da miséria, o concreto do rato, da lama, do lixo, da casa de caixote, do prego, da morte na vala. A morte para vocês é um drama cristão, o fim numa cama, num ataque de coração. A morte para nós é o "presunto" diário, somos desovados na vala: a morte está na esquina da birosca.
Eu não ligo para morrer, aliás vou morrer logo. Estamos no centro do insolúvel. Vai piorar muito. Pois os intelectuais não falavam em luta de classes, em "seja marginal seja herói"? Pois eu sou um marginal, sou herói, sou o verdadeiro "parangolé"! Por que vocês não me expõem na Bienal? Puta "instalação" eu sou! Ah! Ah!... Vocês achavam que nós éramos um problema para vocês? Pois eu acho que vocês são um problema para nós.
Quando a polícia matou 111 no Carandiru vocês ficaram "chocados". Quando houve o massacre de Vigário Geral, idem. O que rolou? Nada. Só o horror dos finos. Por que o Exército não vai prender a polícia que é nossa sócia, por que não pega os que nos vendem armas e moram em Ipanema? Nós somos uns moleques, somos uns pobres "aviões" miseráveis. Pra vocês eu sou marginal, para mim eu sou herói. É isso aí. Agora, vou bater uma "fileira" em cima da Uzi e fuiiimmm...!
Agora, doidão, finalmente eu vos trago a peste! A peste vem agora! Se nós matássemos apenas os favelados honestos que dominamos, vocês pouco se lixariam para o lance. Como começa a morrer bacana, começa a tragédia. Pra vocês, tragédia é tragédia burguesa. Pobre não é trágico. O Exército está louco para agir, para justificar sua existência, agora que nós o despertamos de sua ociosidade. Não vão poder mais ficar apenas jogando basquete nos quartéis.
Assim como eles gostam da ação (deve ser duro viver sem guerra e sem ditadura), nós adoramos as armas também que vemos nos filmes de "Rambo" na TV. Aliás, agora estamos todos na TV, entramos de "figurantes do mal" no jornal das oito. Olha lá o "Pé-de-Pato", olha lá o "Alemão", olha lá o "Ué"... Botar tanque na favela é mole; quero ver depois. Vão morar lá?
Eu sou apenas um tira-gosto do que vem por aí, sou apenas um "hors-d'oeuvre" para o grande banquete do mal que virá. Vai ser a era das coisas insolúveis.
A morte vai atingi-los também como nos atinge há séculos, desde o tempo em que nossos avós carregavam barris de merda para vocês andarem em redes. O Haiti vai ser aqui sim, no Rio. A solução virá sim, um dia, mas depois de muita morte, depois de muita boca cheia de formiga, depois que vocês conhecerem a concreta face do rato, além da vida doce de burocratas e políticos burgueses. Eu sou só o começo.
Depois de muitas tragédias, chegaremos talvez a um período novo. E isso será depois de tentarem nos extirpar pelas bombas, como antes nos extirpavam mentalmente pelo lirismo ou pela angústia. Agora, uma solução rápida, enojada, de nariz tapado (é horrível subir favela) só é possível pelo genocídio. Por que vocês não tentam? Uma bomba em cada favela, são 450 favelas no Rio, e pronto. Morre tudo e o Gomes de Almeida Fernandes poderá urbanizar tudo e vender lotes, como ele fez junto com o Sergio Dourado nos anos 70, acabando com a zona sul. Não é uma uma boa idéia?
Mas uma solução a longo prazo virá, isso eu sei, sou otimista. Depois de todas estas bravatas, heroísmos, demagogia e vexames, a solução virá. Mas para isso vocês vão ter que colocar na equação a incógnita do "insolúvel", como a do "infinito", um "x" misterioso.
A idéia de que há "solução" é antiga. A partir do trágico insolúvel, algo pode acontecer. Mas vocês, bacanas, são difíceis de educar. Estamos tentando educá-los desde Canudos, quando os soldados que voltaram ganharam barracos no primeiro morro da "favela" (ali na Saúde), vocês sabiam? Vocês são difíceis de educar, mas nós chegamos lá. Depois de atravessarmos a idéia do "insolúvel", chegaremos lá. Depois da tragédia, democrática, para todos, chegaremos lá. Eu sou apenas o primeiro pino da bomba que vai explodir. Eu sou o primeiro pino de uma nova consciência para vocês. O Rio é o trailer do Brasil. E eu sou uma vanguarda cultural. Danem-se!

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