São Paulo, sexta-feira, 4 de novembro de 1994
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A hora e a vez da desindexação

DAGOBERTO LIMA GODOY

Nos países de moeda estável –sejam suas economias do tamanho dos Estados Unidos ou da Dinamarca, do Japão ou da Costa Rica– os preços oscilam diariamente, refletindo pressões de custos, variações cambiais ou fatores sazonais.
Entretanto, não obstante essas significativas flutuações, que são registradas nas Bolsas de mercadorias, nas planilhas dos órgãos de pesquisa e nas imbatíveis percepções dos consumidores, as taxas de inflação naquelas economias são extremamente reduzidas.
Qual o milagre? Certamente, encontramos a resposta quando examinamos o que acontece em nossa própria economia.
No Brasil, a situação é inteiramente distinta. O simples anúncio de alguns institutos de pesquisa de que a inflação deverá ficar próxima a 3% neste mês de outubro serviu para reacender as expectativas sobre o retorno da inflação.
Pior do que isso: pesquisas de opinião indicam que para uma grande parte da população a estabilidade de preços será apenas temporária! O que há de errado com a economia brasileira? Por que, diferentemente de outros países, os programas de estabilização estariam inevitavelmente fadados ao fracasso em nosso meio?
Não temos dúvidas de que a causa principal para essas expectativas pessimistas reside na nossa convivência com um processo de inflação crônica, de caráter endêmico, realimentado continuamente por mecanismos de indexação que estiveram presentes por décadas e ainda remanescem de forma residual em nosso sistema econômico. Esta é a diferença básica entre as economias estáveis e o nosso sistema econômico.
Ocorre que naqueles países as elevações de preços tendem a ser sempre relativas, tipicamente localizadas, pois enquanto alguns preços sobem (pelas mais diferentes razões) outros são forçados a cair. E isto por uma razão muito simples: tanto as pessoas como as empresas administram seus orçamentos com a clara consciência de suas limitações.
Assim, quando alguns preços sobem, os orçamentos encurtam e os agentes econômicos são forçados a reavaliar suas prioridades de despesas. As demandas por aqueles bens e serviços percebidos como menos urgentes caem e com elas seus respectivos preços. Tais movimentos relativos acabam tendo mínima repercussão sobre as taxas de inflação. Este é, na verdade, o mecanismo de funcionamento normal de uma economia de mercado onde não há regras de correção monetária ou indexação.
O que acontece, em contrapartida, com uma economia indexada? A maior tentação do ponto de vista da "engenharia social" é "repor a inflação passada" nas rendas dos agentes econômicos. A cada período, os orçamentos dos assalariados e os ítens de despesa das empresas são artificialmente "esticados" segundo o índice de inflação passada. No caso dos trabalhadores, através de aumentos nominais de salário; no âmbito das empresas, por uma atualização das despesas com pessoal, energia, fornecedores, etc.
Essa "reposição obsessiva" ignora que as elevações de preços fazem parte de uma reação corretiva, refletindo a efetiva escassez de oferta ou uma incompatibilidade distributiva (muita moeda para poucos produtos e serviços). Nessas circunstâncias, não há que estranhar se todos os preços passam a subir de forma sincronizada, nem que a inflação acabe sendo um eterno componente da vida social.
Se a indexação é nociva à vida econômica, por que ela subsiste? Aqui temos talvez a ilusão mais permanente de nossa convivência social, a de que o mecanismo da correção monetária –como o que foi instituído desde 1964– protegeria o patrimônio real dos poupadores e a renda dos assalariados.
Com relação à poupança, é fácil constatar esse fato ilusório. Alguém que tivesse aplicado uma soma de dinheiro, em 1970, não conseguiria hoje obter a mesma quantidade de bens e serviços daquela época. Justamente porque o valor real da própria correção monetária caiu ao longo do tempo, sofrendo a erosão das sucessivas alterações no uso dos índices de preços ou indisfarçados expurgos, como o que foi promovido em 1990, no Plano Collor.
No caso dos rendimentos dos trabalhadores, a constatação é também cristalina: a partir de 1979, à medida que aumentava o grau de indexação salarial –com intervalos cada vez menores entre os reajustes–, até o Governo Sarney –quando a referida indexação atingiu seu grau mais elevado–, verificou-se uma queda progressiva do poder de compra dos salários.
Este mesmo fato repetiu-se nos doze meses que antecederam a chegada do real. Tal fenômeno verificava-se por uma razão evidente: a economia respondia com uma aceleração da inflação, diante do encurtamento temporal entre reajustes, que tendia a elevar os salários reais médios, já que estes novos níveis eram incompatíveis com as condições de produtividade então existentes na economia.
A lição parece clara em ambos os casos: não será um artifício legal nem a boa vontade dos governos que protegerão a riqueza dos poupadores ou o poder de compra dos assalariados, mas sim um ambiente de estabilidade econômica consistente.
Pelas razões alinhadas, que não refletem apenas conjeturas teóricas, mas a experiência duramente vivida pela nação nas últimas duas décadas, se impõe dar um basta definitivo a todos os remanescentes de indexação formal, sejam eles nas taxas de juros nominais (TR), no recolhimento dos tributos (Ufir e correlatos) e nos salários (IPC-r).
Se a estabilidade de preços é um bem de caráter coletivo e a inflação um flagelo social, nenhum agente econômico –seja ele assalariado, empresário ou governo– poderia beneficiar-se de indexações privilegiadas. Cada um deles precisa enfrentar os riscos e carregar o ônus da inflação e da desorganização da economia.
Profundamente lamentável é o fato de que ainda estejamos discutindo coisas obsoletas como, por exemplo, a indexação dos salários. Se renunciássemos de vez a esse artifício nocivo, certamente poderíamos caminhar para a viabilização do mecanismo sadio da participação dos trabalhadores nos resultados das empresas. Se já nos tivéssemos posto de acordo sobre a terapia antiinflacionária, poderíamos efetivamente avançar, dirigindo nossas energias para a promoção do desenvolvimento e da justiça social.
Ainda há tempo, ainda que não muito, para reagir antes que a repetição dos velhos erros nos jogue de volta ao passado de estagnação e desesperança. Há tempo, sim, para repelirmos as propostas demagógicas e rompermos com as ilusões da cultura inflacionária. É a hora e a vez da desindexação total.

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