São Paulo, sábado, 5 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A vida como um todo

JOSUÉ MACHADO

Expressão tirada do arco da velha, "como um todo" é empregada em geral para dar balanço à frase, força ao discurso. O autor na verdade pensa que está dando o tal balanço, que está enriquecendo a exposição da idéia. Está na verdade escorregando nas próprias tamancas e inchando a frase com uma tolice tão cheia de sentido quanto um daqueles discursos que tivemos o prazer de ouvir (e ver) durante o horário político obrigatório.
Um bom articulista, por exemplo, num momento de indisposição estomacal, escreveu sobre os estragos que a atitude de certos empresários "causam à saúde como um todo". Todos os dias, em todo lugar, os jornais e as revistas registram que alguém como um todo se referiu a algo como um todo.
Por que "como um todo"? A saúde como um todo, o Corinthians como um todo, a sociedade como um todo, o povo como um todo, o Brasil como um todo, o Lula como um todo, o mercado como um todo, o nabo como um todo, a vovozinha como um todo. Por quê?
Como todas as coisas têm nome, pode-se concluir sem dificuldade que não é preciso juntar o "como um todo" ao nome que já abrange o todo como um todo.
Se alguém como um todo quiser se referir a (sem acento) parte do todo expresso pelo nome, a língua propicia generosamente elementos para particularizar a coisa. Caso seja preciso, diremos "saúde mental", "sistema oficial de saúde", "mortalidade infantil", "rede hospitalar", "saúde da vovó" e assim por diante.
Em caso contrário, dispensaremos o "como um todo", muito usado nos meios políticos, para não machucar os ouvidos de ninguém. Todos conhecem, por exemplo, o deputado Inocêncio de Oliveira e o senador Humberto Lucena, cujos nomes, palavras, vozes e atitudes já os definem como um todo. Na verdade, como dois todos. E que todos...
O curso da vida
O leitor Renato Luz, de Uberaba, Minas Gerais, teve dúvidas sobre a conveniência de utilizar a expressão latina "curriculum vitae" (curso da vida) e seu plural, "curricula vitae", assim, cruamente, como Nero exigia antes de espetar as vítimas. "Curriculum vitae", sabemos todos, é expressão que se incorporou à linguagem comercial e acadêmica para definir o conjunto de informações e habilitações referentes a alguém, estudante ou candidato a uma vaga.
Como a expressão foi absorvida, aportuguesada e reduzida –currículo/currículos–, poderá parecer pedante utilizar a forma latina, principalmente no plural, que soa mais estranho depois que os romanos foram derrotados pelos bárbaros e que a missa passou a ser falada em português.
Nos jornais, em anúncios de ofertas de emprego, costumam-se usar as iniciais: "mandar c.v.", "trazer c.v.". Pela natureza do pessoal que circulou, e ainda circula, nas esferas do poder, dizem que em certas áreas não se pede c.v. e sim F.C. Folha corrida.

Texto Anterior: Presos dois dos matadores mais procurados pela polícia
Próximo Texto: Gustavo Bulhões vai para presídio especial
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.