São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994 |
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A lei da causalidade às avessas
MILTON SANTOS
Pensamos que para ser realmente pedagógica, uma discussão dessa obra pode versar sobre três temas: 1) a reabertura, neste fim de século 20, do debate sobre racismo científico; 2) o papel atual da ciência, seus objetivos, temáticas, métodos, palavras-chave; 3) o processo de produção de um discurso eficaz, numa época em que é muito fácil confundir o mundo tal como ele é, com as visões do mundo, tal como podem ser oferecidas. Os autores retomam o velho debate sobre quociente intelectual, para lançar no mercado novos argumentos, considerados científicos, sobre diferenças inevitáveis no destino dos homens, segundo a sua raça. A oportunidade da iniciativa é evidente, já que na Europa, no Japão, nos Estados Unidos, as manifestações racistas se repetem e a exclusão dos grupos minoritários ou minorizados não é deixada, apenas, ao mercado, mas sancionada por decreto. Aliás, os autores chamam a atenção, no tema do racismo, para a diferença entre o que as pessoas pensam e o que elas dizem. Dando-lhes argumentos científicos, o número dos que pensam e dizem tenderá a aumentar... Quais, em resumo, são os argumentos de Murray e Herrnstein? Seu ponto de partida é a análise de séries de pesquisas sobre o quociente intelectual de diferentes grupos étnicos e nas quais os asiáticos aparecem no topo, os brancos estão em situação intermediária e os negros em posição inferior. Mas o essencial do trabalho é, mesmo, comparar brancos e negros, hoje e ao longo do último meio século, do ponto de vista da capacidade cognitiva. Dizem os autores que, a despeito dos programas afirmativos da igualdade racial, a situação dos negros praticamente não melhora nesses 50 anos e, o que é pior, nos estratos onde é melhor a educação e maior a renda, as diferenças de QI seriam ainda maiores do que nos estratos inferiores. Daí a desigualdade social persistente. Para eles, o problema seria menos essas diferenças, mais como sair delas... E sua conclusão é que os esforços inscritos na legislação americana dos direitos civis para reduzir diferenças não deram resultados. Uma das razões vem do fato, segundo o livro, de que as próprias desigualdades socioeconômicas têm origem nas diferenças de QI. Você fica pobre e deseducado porque é burro de nascença. Então, a questão não seria social, isto é, devida ao entorno familiar e social de cada um, mas propriamente étnica. Para Murray e Herrnstein, nos Estados Unidos de hoje, para conhecer de antemão qual o provável desempenho de uma criança na escola secundária, é melhor buscar saber qual é o seu QI do que a educação e a situação socioeconômica dos pais. Não haveria, assim –a frase é minha– seres inferiorizados, mas, efetivamente, seres inferiores. Desse modo, não valendo a pena queimar boa vela com defunto ruim, o melhor, mesmo, seria renunciar a programas que já provaram ser ineficazes e deixar à sua sorte os desvalidos. No caso brasileiro, onde a distância entre pensar e dizer é ainda maior que nos Estados Unidos, a argumentação preconceituosa tem outros ingredientes. Uma antropóloga da Universidade de São Paulo, diante do clamor pela ausência de negros nas melhores universidades, lhes sugere que tenham paciência e esperem a sociedade mover-se lentamente, para que seja removida essa injustiça secular. O livro é bem feito. Ponteado de manifestações calculadas de condescendência para com os negros, a trama central do argumento não deixa dúvida: trata-se de provar, com um estilo de combate que utiliza a lógica dos números, que o racismo é cientificamente aceitável, porque cientificamente comprovadas as diferenças permanentes entre as raças. De que serviria, então, contra-argumentar com o debate, também já velho, na medicina e na psicanálise, sobre a noção de inteligência e a discutível eficácia da psicometria e de testes como esses? Ser inteligente é o quê? Ser capaz de, num dado momento, fazer aquilo que é pedido pela corrente dominante da sociedade? A performance individual será medida pelo grau de conformismo? Assim, a questão dos valores seria definitivamente desterrada, e, mesmo, os mais perversos dormiriam tranquilos. Esse livro e sua argumentação científica recolocam, com força, a problemática atual da ciência, quando as temáticas são, em maioria, decididas pelo mercado político e pelo mercado econômico, implantando uma lei da causalidade às avessas: é o efeito que precede a causa, predeterminando o resultado da pesquisa. Como a política é, de longe e de perto, comandada pelo mercado global, e o mercado global não tem finalidade fora dele mesmo, a forma presente de racionalidade dominante a que serve a ciência corre o risco de ajudar a implantar no mundo uma sociedade inteiramente sem sentido. Aliás, Max Weber há décadas já o havia previsto. O que é mais grave, neste mundo globalizado, onde nada se faz sem discurso, é que os livros não se tornam best-sellers, encomendados para ser best-sellers, com uma biografia previamente traçada nos escritórios das grandes editoras. Pelo menos, essa obra polêmica nos deixa uma lição: neste fim de século, um grande problema e um urgente dever é reaprender a ler livros. Texto Anterior: Pavarotti bisa ária e quebra tradição do Metropolitan Próximo Texto: O que é o livro Índice |
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