São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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A lei da causalidade às avessas

MILTON SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro de Charles Murray e Richard Herrnstein sobre diferenças étnicas nos Estados Unidos, intitulado "The Bell Curve" (A Curva do Sino), está provocando um tão grande barulho no mundo inteiro, que escrever sobre ele, num planeta atordoado pela mídia, é se arriscar, seja qual for nosso argumento, a engrossar a corrente dos seus propagandistas. Esse exercício, porém, pode valer a pena, se em vez de ficarmos muito perto do objeto escolhido como tema, tomarmos como objeto de debate o próprio livro.
Pensamos que para ser realmente pedagógica, uma discussão dessa obra pode versar sobre três temas: 1) a reabertura, neste fim de século 20, do debate sobre racismo científico; 2) o papel atual da ciência, seus objetivos, temáticas, métodos, palavras-chave; 3) o processo de produção de um discurso eficaz, numa época em que é muito fácil confundir o mundo tal como ele é, com as visões do mundo, tal como podem ser oferecidas.
Os autores retomam o velho debate sobre quociente intelectual, para lançar no mercado novos argumentos, considerados científicos, sobre diferenças inevitáveis no destino dos homens, segundo a sua raça. A oportunidade da iniciativa é evidente, já que na Europa, no Japão, nos Estados Unidos, as manifestações racistas se repetem e a exclusão dos grupos minoritários ou minorizados não é deixada, apenas, ao mercado, mas sancionada por decreto. Aliás, os autores chamam a atenção, no tema do racismo, para a diferença entre o que as pessoas pensam e o que elas dizem. Dando-lhes argumentos científicos, o número dos que pensam e dizem tenderá a aumentar...
Quais, em resumo, são os argumentos de Murray e Herrnstein? Seu ponto de partida é a análise de séries de pesquisas sobre o quociente intelectual de diferentes grupos étnicos e nas quais os asiáticos aparecem no topo, os brancos estão em situação intermediária e os negros em posição inferior. Mas o essencial do trabalho é, mesmo, comparar brancos e negros, hoje e ao longo do último meio século, do ponto de vista da capacidade cognitiva.
Dizem os autores que, a despeito dos programas afirmativos da igualdade racial, a situação dos negros praticamente não melhora nesses 50 anos e, o que é pior, nos estratos onde é melhor a educação e maior a renda, as diferenças de QI seriam ainda maiores do que nos estratos inferiores. Daí a desigualdade social persistente. Para eles, o problema seria menos essas diferenças, mais como sair delas... E sua conclusão é que os esforços inscritos na legislação americana dos direitos civis para reduzir diferenças não deram resultados.
Uma das razões vem do fato, segundo o livro, de que as próprias desigualdades socioeconômicas têm origem nas diferenças de QI. Você fica pobre e deseducado porque é burro de nascença. Então, a questão não seria social, isto é, devida ao entorno familiar e social de cada um, mas propriamente étnica. Para Murray e Herrnstein, nos Estados Unidos de hoje, para conhecer de antemão qual o provável desempenho de uma criança na escola secundária, é melhor buscar saber qual é o seu QI do que a educação e a situação socioeconômica dos pais.
Não haveria, assim –a frase é minha– seres inferiorizados, mas, efetivamente, seres inferiores. Desse modo, não valendo a pena queimar boa vela com defunto ruim, o melhor, mesmo, seria renunciar a programas que já provaram ser ineficazes e deixar à sua sorte os desvalidos. No caso brasileiro, onde a distância entre pensar e dizer é ainda maior que nos Estados Unidos, a argumentação preconceituosa tem outros ingredientes. Uma antropóloga da Universidade de São Paulo, diante do clamor pela ausência de negros nas melhores universidades, lhes sugere que tenham paciência e esperem a sociedade mover-se lentamente, para que seja removida essa injustiça secular.
O livro é bem feito. Ponteado de manifestações calculadas de condescendência para com os negros, a trama central do argumento não deixa dúvida: trata-se de provar, com um estilo de combate que utiliza a lógica dos números, que o racismo é cientificamente aceitável, porque cientificamente comprovadas as diferenças permanentes entre as raças. De que serviria, então, contra-argumentar com o debate, também já velho, na medicina e na psicanálise, sobre a noção de inteligência e a discutível eficácia da psicometria e de testes como esses? Ser inteligente é o quê? Ser capaz de, num dado momento, fazer aquilo que é pedido pela corrente dominante da sociedade? A performance individual será medida pelo grau de conformismo? Assim, a questão dos valores seria definitivamente desterrada, e, mesmo, os mais perversos dormiriam tranquilos.
Esse livro e sua argumentação científica recolocam, com força, a problemática atual da ciência, quando as temáticas são, em maioria, decididas pelo mercado político e pelo mercado econômico, implantando uma lei da causalidade às avessas: é o efeito que precede a causa, predeterminando o resultado da pesquisa. Como a política é, de longe e de perto, comandada pelo mercado global, e o mercado global não tem finalidade fora dele mesmo, a forma presente de racionalidade dominante a que serve a ciência corre o risco de ajudar a implantar no mundo uma sociedade inteiramente sem sentido. Aliás, Max Weber há décadas já o havia previsto.
O que é mais grave, neste mundo globalizado, onde nada se faz sem discurso, é que os livros não se tornam best-sellers, encomendados para ser best-sellers, com uma biografia previamente traçada nos escritórios das grandes editoras.
Pelo menos, essa obra polêmica nos deixa uma lição: neste fim de século, um grande problema e um urgente dever é reaprender a ler livros.

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