São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Um Brasil caricatural para alemão ver

LILIA K. MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estávamos na famosa feira de livros de Frankfurt (Alemanha), que a cada ano reúne editores e a imprensa do mundo inteiro. No entanto, o cenário ali montado não podia deixar de lembrar um outro espetáculo: as famosas exposições internacionais, do século passado; palco privilegiado para a exibição do avanço e do "estado de civilização" dos diferentes países que sistematicamente participavam desses eventos.
As coincidências não eram poucas. Em primeiro lugar, o local da feira fora originalmente idealizado, em finais do século 19, para a realização de exposições internacionais. Desse período, ainda subsiste o antigo prédio, todo vidrado e decorado em estilo suntuoso, que hoje divide espaços com um edifício moderno, adaptado às demandas das feiras atuais, com seus milhares de visitantes. De toda forma, respira-se o ar das exibições do 19, quando os países participantes expunham ora a sua indústria, ora seus objetos exóticos e tropicais, como no caso do Brasil.
Tratava-se, portanto, de exibir o país para o exterior e criar uma nova identidade, uma feição diferente para essa monarquia tropical rodeada de repúblicas. Situação paradoxal, ao mesmo tempo em que se buscava vincular o país à uma tradição européia, tão antiga como as origens de nosso rei louro e de olhos azuis, descendente de Habsburgos e Bourbons; por outro lado, a imagem geral revelada, pelo conjunto das exibições, era a de um país caracterizado por suas gentes e produtos diversos do modelo ocidental. Enfim por mais que alardeássemos uma realidade "moderna", quando se tratava de sintetizar uma imagem, inventar uma tradição, o que surgia era sempre a representação da "exótica barbárie" ou ao menos a "simpática face de um país inferior".
Não era exatamente esse o panorama da exposição que se realizava em outubro de 1994. Dessa feita, tratava-se de mais uma feira anual de livros, marcada por seu caráter ao mesmo tempo neurótico e profissional. Nos seus inúmeros corredores, e quilômetros de distância, correm apressados indivíduos de pasta na mão e óculos no nariz, sempre atrasados para seu próximo encontro. Pouco espaço sobra, portanto, para o curioso alegre, disposto a um bom papo ou a uma ingênua "troca cultural". propício para o debate e mais apropriado para a exibição.
Foi nesse contexto que o Brasil foi selecionado como "país tema". A cada ano uma nação é homenageada com tal escolha, sendo que antes do Brasil, países como França, Holanda, Itália e Japão tinham ocupado o pavilhão especial. A tarefa era portanto grande, mesmo porque as nações até então selecionadas, esmeraram-se na idealização de suas exposições, exibindo a sua tecnologia, apresentando a sua literatura, ou tematizando a sua história.
Pouco importa, aqui, comentar as vicissitudes do processo de realização da mostra brasileira, ou julgar o caráter da organização. Importa sim, refletir sobre o resultado, sobre a exibição em si. Como dizia o jornal português "O Público", de 11 de outubro, "o Brasil não se arriscou" e de fato não arriscou nada. Devolveu para o público estrangeiro, a mesma imagem que já se veiculava deste país em outros certames: o país da Amazônia, das religiões populares, do pouco apego ao trabalho e da miscigenação. Com efeito, a representação veiculada em finais do século passado, que falava de um grande "laboratório racial vivo", circundado por uma flora e uma fauna também exuberantes; não se afastava muito da imagem geral da exibição de 1994.
Denominada "Uma confluência de culturas", a mostra revelava, didaticamente, o tipo de argumento que a sustentava. Já na entrada, em grandes letras, explicava-se o sentido do termo sincretismo, palavra chave para a compreensão da exposição": "no definite cultural frontiers at all". Aí estava a imagem central do país. O país sem fronteiras, o local em que tudo tende a se amolecer, numa versão freyreana da realidade.
Bem ao lado da definição inicial aparecia um texto de abertura, não assinado, que resumia nossa singularidade cultural: "Diferentes culturas foram trazidas para formar o povo brasileiro. Essas coisas acontecem na América. O português veio e vestiu os índios. Mas os índios ensinaram os portugueses a linguagem da natureza. Os africanos trouxeram a linguagem e o culto do corpo. O latino, tupi, afro." Ao lado da velha representação romântica do 19 –o índio é sempre tupi– estava evidente a exaltação de um sincretismo que de biológico e racial se faz cultural e social. Alheia à visão homogeneizadora contida nesse tipo de noção, a exposição apresentava uma terra das misturas ideais. Um pouco de tudo; um pouco de nada.
Mas não era só. Logo após as explicações iniciais, surgiam as primeiras imagens. Do lado esquerdo, um grande monumento disforme chamava a atenção não só pelo mau gosto, como em função da quantidade de representações nele aglutinadas. Tratava-se de uma grande peça recortada por imagens diversas em seus extremos: no alto e à direita destacava-se a figura do mais recente herói brasileiro, Ayrton Senna, fazendo o "V" da vitória.
Logo à esquerda, aparecia outra personalidade brasileira, o jogador Romário, que no caso representava o nosso sucesso no futebol. Como se não bastasse, abaixo e mais à esquerda uma imagem do carnaval carioca fazia par com uma cena que se assemelhava a uma possessão, em meio a um culto religioso qualquer. Não é preciso muito rigor científico para concluir que estávamos diante de uma espécie de santuário com imagens para exportação; um monumento dedicado às nossas figuras de maior visibilidade. Nos esportes, na religião obscurantista estariam os grandes traços de nossa cultura e identidade. Tal qual um espelho, jogávamos de volta, uma imagem ainda mais caricata do que aquela que nos é normalmente atribuída.
Seguindo-se pelo lado direito, chegava-se a uma seção dedicada à "natureza brasileira". Tudo começava com o rio Amazonas, muitos bichos e florestas. Mas a surpresa maior é que, sem qualquer legenda, surgiam misturadas fotografias das cataratas, do cerrado, de Vila Rica e de Salvador, cenas do Rio e de Brasília; como se o Brasil, para todos os efeitos, fosse uma grande e misteriosa Amazônia.
Seguia-se a essa seção, uma outra dedicada ao "cotidiano", aonde apareciam dispostas uma série de frases: "No dia-a-dia só se fala de política, mulher e futebol". "O futebol é a religião local". "A alegria da vida é o grande trunfo de nossa identidade". Para acompanhar o rigor do texto, surgiam imagens na tela de TV que destacavam cenas de futebol, carnaval, indígenas na mata e muitas mulheres de biquíni; exatamente como o diabo gosta. Esse era o lado complementar ao país da "grande flora". O país do jeitinho, da falta de seriedade e de trabalho.
Mais à frente, uma nova entrada apresentava a economia brasileira, disposta em um grande mapa, que ora ressaltava a nossa produção de petróleo (como se fôssemos um emirado árabe), ora demonstrava a força da cana-de-açúcar, ora se limitava a expor fotos com muitas plantações. Desenhava-se, portanto, um Brasil para exportação, com referências apenas passageiras a setores terciários ou a um parque industrial.
Outras seções compunham o perfil da exposição. Uma delas dedicava-se ao tema da mistura racial ou, nos termos da exibição, "the wisdom of natural selection. A laboratory for the future". Usando, nesse caso, as mesmas expressões das mostras do século 19, o Brasil despontava como um bom laboratório racial, um fruto inesperado de uma mistura extremada. Fotos e mais fotos (que mais se pareciam com um anúncio da Benetton) mostravam indivíduos sorridentes das mais diferentes origens e condições. Brancos, morenos, loiros, ruivos, vermelhos e amarelos; um verdadeiro "carrefour" de cores representava a nossa falta de padrão racial.
Na continuação, sacas de café estilizadas serviam de suporte para aparelhos de TV que projetavam novelas de sucesso. Além disso, para deleite dos alemães, o "bar Ipanema" oferecia café e a tão pedida caipirinha. Por fim livros imensos e sem nome, feitos de papelão, fechavam a exposição rodeados por mais televisões e a caricatura de alguns escritores tropicais como Jorge Amado, Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues. Enfim, só faltou a areia da praia, um pouco de sol e muito samba.
Brasil com "z"
A feira foi invadida pelos brasileiros. Artistas com suas pastas, autores com seus textos caminhavam tontos pela feira acreditando que "era agora ou nunca". O Brasil também estava fora da feira. Foram organizados debates e algumas poucas mostras, já que muitas não chegaram à Alemanha.
Mas o verdadeiro cartão postal, o ticket de entrada, era mesmo a exposição "Confluência de culturas". Nela, assim como há 100 anos atrás, o Brasil surgiu pintado a partir do verde de suas matas; do negro de suas mulatas; da alegria de seu esporte. O Brasil fez da exibição um grande "happening", que reconstruiu uma antiga imagem caricatural: um Brasil para alemão ver; um Brasil com "z".
A lógica que se impôs, foi a mesma utilizada pelos museus etnográficos do século passado, em que as peças jamais apareciam nomeadas, já que o objetivo era caracterizar o grupo e não o indivíduo. No caso, o retrato era de um Brasil sem brilhos ou destaques individuais, marcado pelo coletivo e por uma sociedade alegre, despreocupada, subjetiva e portanto singular. Triste país sem intelectuais ou pensadores a serem reconhecidos.
Enfim, a exposição teatralizou uma identidade construída de fora para dentro e rearranjada internamente no sentido de oficializar imagens cristalizadas. De fato, é sempre uma imagem mestiça e tropical que se afirma, e que inventa um Brasil como unidade cultural. Jogo em que o que vale é a homogeneidade, quando se trata de expor uma face pública, não importa o contexto ou o local, o que se destaca é a representação do exótico e do singular.
Resta pensar se o Brasil que foi tema da feira de livros de Frankfurt, é o mesmo que se sentou com Pedro 2º em finais do século nas exposições universais, ou se então é a nossa representação externa que pouco mudou. Na lógica do contraste, que faz da alteridade uma marca fundamental, é um Brasil pela negação que desponta, aquele que é o que os outros não são. Se não se trata de dizer não a qualquer singularidade, a questão é indagar porque em momentos como esse aparecemos sempre como o outro lado, a outra face. Como dizia o texto da exposição, esse continua a ser um país simpático em que o que importa mesmo é política, mulher e futebol.

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