São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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O MAGO E A AVÓ

A TV e a figura da avó marcaram Jean-Paul Gaultier, último revolucionário
da moda, que começou a trabalhar com seu ursinho de pelúcia.
– Fale sobre a sua família.
– A família determina o que a criança vai ser e, de certa forma, fui educado por minha avó. Se faço o que faço, é por causa dela. Eu ficava no consultório dela (era um misto de enfermeira, estecista, curandeira sentimental do bairro) e a ajudava, recebendo as clientes. Eu me divertia, prestando atenção nessas senhoras. Daí, me interessei pela relação entre pessoa e imagem: expressão, maquiagem, roupa...
– Na casa dos seus pais (um contador e uma secretária) o clima devia ser bem diferente.
– A influência deles sobre mim não foi tão grande. Mas eram muito tolerantes. Com eles, aprendi a ser positivo e amar as pessoas. Quando alguém cresce onde há medo ou repressão vira um adulto cheio de medo e agressividade.
– Como foi sua infância?
– Sou filho único. Ficava sozinho durante muitas horas, sonhando quase sempre. Uma diversão frequente era olhar as nuvens e imaginar coisas. Depois, comecei a desenhar. Não fazia amigos, porque os outros meninos jogavam futebol.
– Quando substituiu as nuvens pela televisão?
– Comecei a assistir TV muito cedo para a época (1959). Os outros meninos de 7 ou 8 anos não tinham televisão, ou viam menos. Minha avó me deixava assistir até o fim da programação. Ainda me lembro da fascinação pelo aparelho... Eu tomava notas do que via na tela. Teve um programa sobre Folies Bergère (casa de espetáculos em Paris) que me fascinou. Eram mulheres tão belas e emplumadas, com vestidos sensacionais! Aí, comecei a desenhar mulheres com vestidos extravagantes. Um dia, um professor me pegou pintando uma vedete na aula. Ficou doido. Gritava "que vergonha!". Pregou o desenho nas minhas costas e me fez desfilar pela escola.
– O senhor se sentiu humilhado?
– Ao contrário. Percebi que os outros meninos adoraram o desenho. Nesse dia, fiquei um pouco mais popular. Tirei duas lições positivas: podia me orgulhar dos desenhos e usá-los para me relacionar. Percebi que podia ser aceito.
– Quando passou dos desenhos à costura?
– Primeiro me interessei pela maquiagem. Minha primeira cobaia foi meu ursinho de pelúcia. Pobrezinho, meu primeiro cliente. Eu pintava os olhos dele, passava rouge, fiz uma peruca para ele, tudo copiado da TV. Depois treinei com minha avó, que uma vez me deixou pintar seu cabelo com reflexos cor-de-rosa, imagina só, no começo dos anos 60! A roupa veio pouco a pouco. Seguia os desfiles pela imprensa e acabei me transformando em um expert. Podia identificar, só olhando, se um vestido era de Chanel, de Cardin, ou de qualquer outro.
– Tudo isso sem tocar em uma agulha.
– Ah sim, praticando sozinho, com as revistas. Fui autodidata. Não gostava de costurar por costurar, mas de conectar a roupa à personalidade. A escolha da roupa nunca é passiva, a pessoa tem que ter a ver com a jaqueta que veste.
– Como foi o primeiro contato com os estilistas?
– Aos 14 anos, reuni minha primeira coleção em um caderno. Aos 18, enviei os desenhos a Dior, Yves Saint-Laurent e a Pierre Cardin. Um dia recebi um convite de Cardin, meu primeiro chefe e meu professor. Em 1974, me mandou às Filipinas, para um ateliê de confecção. Voltei carregado de idéias.
– Uma delas foi a coleção de bijuterias luminosas, certo?
– Tinha vontade de ser independente. A bijuteria foi o primeiro passo. Em 1976, diante de quatro gatos pingados, apresentei minha primeira coleção de verdade. Não foi um grande sucesso, claro. Mas tinha me atirado ao mar, e tinha que nadar.
– A coleção de 1978, chamada "High Tech" sim, foi um sucesso. O senhor começou a sair nos jornais.
– A "High-Tech", e logo depois a "James Bond", tiveram alguma repercussão entre os jovens, mais receptivos a minha forma não-convencional de apresentação. Eu queria modelos com um tipo diferente de beleza. Com mais caráter. Em ambientes influenciados pelo punk, também era mais fácil agradar com peças experimentais e materiais alternativos.
– Alguém no mundo da moda já disse que não há quem corte melhor que Gaultier.
– Tive professores como Pierre Cardin e Jean Patou. não fui à escola de costura, mas trabalhei com os melhores, e conheço muito bem o ofício. Há muito esforço na confecção e cada peça. Um desenho é só um desenho; é preciso escolher um tecido, cortá-lo e costurá-lo bem. Isso é que ser estilista. Essa gente que se mete com a costura sem saber do que trata me faz rir.
– O senhor é um grande estilista, vende muito na Europa, converteu muitas de suas peças em clássicos, lançou perfume. Ganha tanto quanto Giorgio Armani?
– Não, porque sou francês e não tenho toda uma indústria por trás, como os italianos, melhores vendedores. Em termos de criativadade talvez sejamos um pouco melhores. Mas, para mim, Armani é muito grande. A verdade é que eu nunca tive a intenção e criar um império da moda. Só quero fazer o que eu gosto. Deve ser terrível trabalhar para manter um império. Não quero comprar edifícios nem investir na bolsa.
– Em que gasta seu dinheiro?
–Vou sempre a Londres, compro vídeos, janto em bons restaurantes... Também convido amigos.
– E compra televisões.
–Sim, tenho um aparelho em cada parte da casa e uma antena parabólica para ver imagens do mundo todo.
– O senhor deve ser um entusiasta do zappong.
– Claro. Fui educado com a TV: reações rápidas para estímulos rápidos. Meu tipos de expressão prediletos são rápidos visuais. Nunca leio, não suporto o rádio. Começo a achar os filmes de cinema muito longos. Isso se nota em minhas coleções.
– Que tipo de filmes o senhor gosta?
–Gosto do filmes franceses dos anos 40. Que elegância, que vestuário! Também gosto, é claro, dos filmes dos meus amigos Pedro Almodóvar – para quem eu fiz o vestuário de "Kika"– e Peter Greenaway. Mas não me dêem por intelectual.
– A política deve lhe interessar um pouco. O senhor assinou um manifesto a favor do Miterrand.
– Mas não devia. Não gosto de opinar sobre o que não entendo. Minha função é fabricar roupa, não consertar o mundo.
– Sua amiga Madonna foi acusada de manipulação, por causa do livro "Sex". O que acha?
– Madonna foi honesta demais para o público americano. É uma rebelde autêntica e querem acabar com ela, porque incomodou o machismo do mundo do espetáculo e venceu máfias.
– O senhor não teme que lhe aconteça o mesmo?
– Já me aconteceu algo parecido, em menor escala, faz uns dois anos. Muita gente começou a dizer que eu estava acabado. Mas é preciso rir de tudo isso. As pessoas se fartam de ver sempre as mesmas caras, querem que uns subam e outros caiam. É uma questão de consumo. Eu acho graça. As pessoas querem consumir pessoas novas. É normal.
*DO "EL PAIS"/ TRADUÇÃO ANA BAN

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