São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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Betty Friedan X Badinter

WILLIAM ECHIKSON
DO "WORLD MEDIA"

Debate
Nos últimos 30 anos, as mulheres ocidentais uniram-se em ideais comuns e mudaram o mundo. Mas há muitas diferenças entre os universos feministas anglo-saxão e protestante dos EUA e católico e latino de parte da Europa. A norte-americana Betty Friedan, 72, autora de "Mística Feminina" (publicado no Brasil em 1971 pela editora Vozes), livro de 1963 que detonou o movimento feminista em seu país, preocupa-se com a nova guerra dos sexos e o contra-ataque machista a que se assiste hoje nos EUA. A feminista e escritora francesa Elisabeth Badinter, 50, autora de "Um Amor Conquistado - O Mito do Amor Materno" e "XY, Sobre a Identidade Masculina" (os dois da editora Nova Fronteira), defende que o século 21 será o da androginia.
World Media - Como descreveriam a situação da mulher hoje em comparação com a de 30 anos atrás?
Betty Friedan - Nos últimos 30 anos, o movimento feminista procurou destruir a imagem tradicional da mulher. Éramos definidas por nossa identidade sexual: esposas, mães, objetos sexuais e donas-de-casa. É o que chamei, em 1963, de "mística feminina". Uma vez livres dessa mística, dissemos: "As mulheres são indivíduos e ponto final". Começamos a reclamar nossos direitos de cidadãs, a igualdade, o direito de contribuir nas grandes correntes da sociedade.
Tudo isso ganhamos, sem dúvida. Com as novas oportunidades que se oferecem, mas também por pressão financeira, a maioria das americanas trabalha atualmente fora de casa. Elas representam hoje 40% do número de estudantes em direito ou em medicina, contra 4% há 30 anos. Temos duas mulheres na Corte Suprema e um número sem precedentes de mulheres no Congresso. Temos também uma primeira-dama, Hillary Clinton, que não é mais uma simples anfitriã, mas passa a imagem de verdadeira companheira do presidente.
Elisabeth Badinter - Acho que as coisas mudaram radicalmente para as mulheres do mundo ocidental. O modelo escandinavo é sem dúvida o mais avançado do mundo. Sua paixão moral e política pela igualdade é a razão. Em nenhum outro lugar viu-se uma pressão tão forte sobre os homens para que dividissem as responsabilidades econômicas, políticas e familiares com as mulheres. Resta saber como eles sentem de verdade essa marcha forçada que os empurra para a igualdade e os fez perder, mais rápido que em outros lugares, seus privilégios.
Nos países latinos, há séculos, os homens e as mulheres mantêm uma relação de conivência e de sedução recíproca. Mas Espanha e Itália estão alcançando a França mais depressa do que se esperava, tendo em vista a imagem tradicional "machista" associada à Europa mediterrânea.
As alemãs têm as mesmas recriminações que as americanas. Estão em estado de guerra contra os homens. O puritanismo é mais forte em seus países que em outro lugar e o patriarcado mais duro também. Na América, como na Alemanha, o Estado não faz nada para ajudar as mães que querem trabalhar. Supervaloriza-se a imagem da mãe e as mulheres se sentem presas a isso, oprimidas pela potência masculina.
WM - Muitas feministas afirmam que as mulheres estão sofrendo um contra-ataque machista. Esse fenômeno seria próprio dos EUA e distante da Europa?
Friedan - Sim, há um contra-ataque machista. Espero que seja apenas um parêntese e não um fenômeno durável. Em meu país, os empregos diminuíram drasticamente –o que atinge as mulheres de duas maneiras. Primeiro porque elas se concentram nos postos médios, em setores bastante atingidos pela crise. Segundo, porque sofrem a frustração e o ódio dos homens que não podem mais contar com um plano regular de seus salários, de seus empregos e de suas carreiras até os 60 anos. Eles perdem seus empregos e as mulheres fazem o papel de bode expiatório.
Mas a meu ver, a tese do contra-ataque machista enfatiza demais a guerra dos sexos. Há algum tempo as organizações feministas têm concentrado sua luta no estupro, na pornografia e no assédio sexual. São questões importantes, mas tanto enfoque às questões sexuais deixa em segundo plano os problemas econômicos que não podem ser resolvidos por fórmulas do tipo: "Contratem as mulheres e demitam os homens". É preciso renovar a análise. A redução da semana de trabalho, a flexibilidade do emprego. Nos EUA, as estruturas de trabalho ainda são calcadas no modo de vida do jovem de antigamente, que tinha uma mulher para cuidar da casa. É preciso encorajar a sociedade a criar novas estruturas profissionais.
Badinter - Parece-me que há uma verdadeira diferença entre a Europa e a América. A ênfase dada pelas americanas à violência masculina e a luta contra a pornografia não têm o mesmo eco na Europa. Aqui as mulheres têm menos medo dos homens e vice-versa. As estatísticas mostram inclusive que há muito mais estupros do outro lado do Atlântico. Talvez seja esta a causa do feminismo americano duro e radical...
Friedan - Não se deve ignorar a diversidade do feminismo. Nos EUA existe um feminismo extremista e radical, o de Andrea Dworkin e de Catharine McKinnon, que conduziu a uma guerra dos sexos implacável, com palavras de ordem anti-sexo, anticasamento, antimaternidade. Acho isso uma loucura. Cria tensões e leva a extremos perigosos, como a censura.
Há também aquelas que optaram por um "feminismo cultural", que pensa que as mulheres e os homens têm poderes diferentes e que portanto as mulheres não têm nada a invejar nos homens, já que começam a encontrar seu terreno particular. Enfim, há ainda as pessoas que, como eu, estão preocupadas com as questões econômicas mais amplas, como a reestruturação do mundo do trabalho, o que não é com certeza uma questão exclusivamente feminina.
Badinter - Não é somente a perda de seus empregos que faz os homens se revoltarem. Eles sentem um atentado à sua integridade viril. Todas sabemos a dificuldade que temos para dividir as tarefas de casa com os homens; lutamos sem descanso para que, com crise econômica ou não, eles colaborem um pouco mais.
Friedan - Nada me faz apoiar a grande guerra dos sexos, que a meu ver mascara a imperiosa necessidade de reformas estruturais. Não sou uma feminista politicamente correta. Não acho que exista uma resposta única para os problemas das mulheres.
Badinter - Eu também não. Constato simplesmente que há dois feminismos muito diferentes na Europa e nos EUA. Me pergunto mesmo se não há uma verdadeira diferença nas relações entre homem e mulher dos dois lados do Atlântico.
WM - Essa diferença chega a duas concepções diferentes da maternidade?
Friedan - Descordo totalmente do que escreveu gente como a escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), que se revoltava contra a maternidade. Claro que contesto as definições da mulher que a reduzem ao estado de mãe. A maternidade deve ser uma escolha. Na América, as mulheres lutaram para ter o direito de escolher o número de filhos, e portanto poder abortar e ter acesso à contracepção. As jovens de hoje escolhem o momento de ter um bebê. Único problema: as estruturas de trabalho as fazem adiar ao máximo essa data.
Badinter - Fico surpresa que você diga que certas feministas foram longe demais ao pôr a maternidade em questão. Era preciso quebrar a imagem tradicional da mãe, vocação obrigada da mulher, toda de dedicação, altruísmo e sacrifício de si mesma. Além de dar às mulheres sua liberdade de ação e fazer os homens entenderem que eles eram tão responsáveis quanto elas por seus filhos. Na Europa, como nos EUA, as mulheres querem ter um ou dois filhos, mas querem poder fazer muitas outras coisas além de bebês. Em relação ao século anterior, a vida das mulheres se diversificou infinitamente. A maternidade representa no máximo um quarto da vida: 20 anos sobre uma esperança de vida de 80 anos!
Além disso, a igualdade dos sexos está condicionada pela adoção de certas leis sociais. Leis que não existem até agora nos EUA, como as que protegem as mulheres que têm filhos. Acho que a ausência dessas leis explica em parte a violência do feminismo americano.
Friedan - É verdade que meu país tem um atraso em relação à Europa no que diz respeito por exemplo à questão da família e dos filhos, primordial para o acesso das mulheres à igualdade. Desde a chegada ao poder de Bill Clinton, as americanas têm enfim direito à licença maternidade. Certo que é mínima, mas pelo menos já existe.
WM - As mulheres devem insistir em suas diferenças ou em suas similaridades?
Friedan - Quando as mulheres começaram a ter cargos de executivas, sonhavam com o uniforme do sucesso: terno riscado e chapéu, uma paródia da moda masculina. Era ridículo e não durou muito tempo. Rapidamente uma outra voz surgiu: a de Carol Gilligan, a universitária de Harvard que afirmava que uma nova forma de administração surgia com as mulheres. Uma verdadeira revolução. O departamento em que dou aulas na Universidade da Califórnia do Sul é a seção "administração" da escola de comércio. Me dou conta todos os dias que as mulheres que se sentem mais seguras começam a mostrar suas diferenças.
Badinter - Não é o caso de as mulheres adotarem um modelo masculino, mas dividir o mundo exterior e a vida familiar com os homens. Minha geração cumpriu uma primeira etapa: pudemos enfim nos exprimir de um modo viril. Essas jovens dão uma imagem positiva da feminilidade que foi durante muito tempo sinônimo de opressão.
Há dois tipos de feminismo: um à maneira de Carole Gilligan, diferencialista, e um feminismo universalista, que acredita que as semelhanças entre os dois sexos são bem mais importantes que as diferenças. Gostaria de saber onde você se situa.
Friedan - Para mim, a igualdade é indispensável. As mulheres não devem ficar confinadas em papéis subalternos. Mas também acredito que não pode haver uma verdadeira igualdade sem a aceitação das diferenças. As mulheres deveriam ser capazes de expressar ao mesmo tempo sua agressividade e seu lado terno, maternal, o dito "feminino".
Em meu país, como no seu, lutamos pela igualdade utilizando o direito, as manifestações, porque verdadeiras barreiras nos separavam até esse momento das boas escolas e dos almoços estratégicos de negócios. Acho que nós nos dirigimos para mais igualdade, e para uma análise mais complexa da personalidade do indivíduo.
WM - Depois de terem ganhado a batalha dos direitos econômicos, as mulheres vão conquistar a política e mudar os métodos de poder?
Friedan - Aí também as coisas estão melhorando. Cada vez mais mulheres são eleitas. Estamos presentes no Senado, na Câmara e na Corte Suprema. Um estudo nos EUA mostrou que duas mulheres a mais na Assembléia Legislativa local ajudam a orientar a ordem do dia para questões que dizem respeito à família, aos filhos e aos problemas das mulheres.
Badinter - Não acho que o exercício do poder vá ser diferente. Simplesmente acho que as mulheres no poder, por sua longa história, vão ter preocupações um pouco diferentes das dos homens. As mulheres pensam mais nas questões sociais, mas não exercem o poder de maneira diferente. No fundo, Margareth Tatcher não era tão diferente de Ronald Reagan...
Friedan - Ninguém vira político sussurrando, é preciso elevar a voz e se fazer ouvir! Não vejo onde está o problema, a idéia de que o poder seja um apanágio dos homens me parece grotesca.
WM - Vocês acreditam que o século 21 verá a ascensão dos valores femininos?
Badinter - Não. O próximo século será definitivamente, para os homens e para as mulheres, o da realização da androginia, quer dizer a possibilidade de exprimir as duas partes de sua personalidade. Acredito, como Freud e outros, que o ser humano é psiquicamente bissexual, masculino e feminino. Segundo as circunstâncias de sua vida, mobiliza-se a feminilidade (quando se é mãe ou na relação sexual) ou sua virilidade (quando se exerce o poder). Não será um século feminino. Nada me irrita mais que a proposição demagógica: a mulher é o futuro do homem.
Friedan - Estou de acordo, mesmo se o termo "androginia" me pareça um pouco inumano. Acredito realmente que nós caminhamos para o reconhecimento de todas as diferenças e semelhanças, de todas as forças e pontos fracos dos homens como das mulheres. Que maravilhosa liberação! Nunca acreditei que havia oposição entre feminismo e feminilidade, e não dou aos homens o direito de me explicar o que é a feminilidade. É o que eu sou, e tudo o que sou.
Hoje, parece-me que são os homens, bem mais que as mulheres, que devem se liberar do machismo, que não se adapta mais ao mundo moderno. Os homens foram educados para refrear suas emoções, participar de campeonatos de braço-de-ferro e manter a cabeça erguida. Em matéria de performance sexual, o relatório Kinsey demonstrou que os homens estão em sua melhor forma aos 17 anos! Então é melhor parar de importuná-los com definições estreitas de virilidade.
WM - Vocês acham que os próximos anos verão uma cooperação maior entre homens e mulheres ou, ao contrário, um reforçamento do confronto?
Friedan - Não acredito que a próxima etapa seja a da revanche das mulheres. Ao contrário, será preciso ainda mais uma vez ultrapassar as noções mesquinhas de avidez, de lucro a qualquer preço, de sucesso, de potência sexual, e encontrar novos valores, mais amplos e inteligentes. É uma virada que será preciso saber negociar.
Nos EUA, acho que os jornais vão parar logo de dar manchetes da "primeira mulher a fazer isso ou fazer aquilo". A próxima mulher na Corte Suprema já será a terceira nomeada nessa instituição e vai se falar pouco sobre isso.
Badinter - A longo termo, sou otimista porque estou convencida de que as mulheres nunca aceitarão renunciar ao que conquistaram há 30 anos. O problema consiste em convencer os homens a avançar na via da igualdade sem jamais romper as negociações.
A sociedade vai acabar por interiorizar definitivamente que um homem vale por uma mulher na família e que uma mulher vale por um homem no trabalho. Isso representa uma enorme evolução que as feministas e as mulheres não podem fazer sozinhas.

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