São Paulo, quarta-feira, 9 de novembro de 1994
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Llosa faz exorcismo político em livro

Autor, que vem ao Brasil, fala sobre "Peixe na Água"

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES

O veneno da política quase derrubou o peruano Mario Vargas Llosa, 58, mas ele se salvou usando como antídoto a literatura. Em "Peixe na Água", que a Companhia das Letras lança na próxima semana, ele narra numa prosa cristalina os três anos de intensa campanha política que culminaram com sua derrota à eleição presidencial peruana de 1990.
O escritor, um dos maiores da atualidade, vem a São Paulo em dezembro, a convite da Folha e da Companhia das Letras, para uma palestra no Masp (leia abaixo).
Nesta entrevista, concedida no apartamento onde mora, em Londres, o autor de "Conversa na Catedral" e "Tia Julia e o Escrevinhador" falou sobre política e literatura e disse o que pensa de Fernando Henrique Cardoso.

Folha - Por que o sr. resolveu escrever "Peixe na Água"?
Mario Vargas Llosa - Por várias razões: em primeiro lugar, para dar a minha própria versão do assunto, pois havia versões muito contraditórias. Em segundo lugar, porque era quase uma necessidade terapêutica, para tirar de cima de mim essa experiência, para pôr um fim a ela.
Bem, eu sou um escritor e a mim acontece o que acontece a todos os escritores: as experiências nevrálgicas em minha vida se convertem numa necessidade imperiosa de escrever.
Folha - Como surgiu a idéia de entrelaçar a crônica da campanha política com memórias de sua infância e juventude?
Llosa - Minha primeira idéia era fazer só a memória da campanha, mas quando comecei a escrever o livro senti que ia dar uma versão muito parcial e até bastante falaz de minha própria pessoa se me restringisse ao puramente político. Porque a verdade é que eu não sou um político. Fiz política de uma maneira excepcional.
Então me ocorreu, um pouco como em muitos de meus romances, alternar dois tempos: a história desses três anos com um período que foi fundamental para minha vocação, que foram os anos de adolescência e juventude, em que descobri a literatura, minha vocação, e em que tive também que enfrentar muitos obstáculos para exercer essa vocação.
Pareceu-me então que dando de maneira alternada esses dois testemunhos sairia uma descrição mais autêntica do que eu fiz nestes três anos de política, e por que o fiz.
Folha - O livro traz um sentimento ambíguo com relação a essa experiência. Afinal: o sr. está arrependido de ter concorrido à Presidência do Peru?
Llosa - Isso que você diz de sentimentos ambíguos é exato. Porque, por um lado, como se vê no livro, foi uma experiência riquíssima, por tudo que eu vi, ouvi, fiz e aprendi –sobre meu país, sobre a política, sobre mim mesmo. Por outro lado, foram três anos que não conduziram a nada.
Não digo isso só pela derrota, mas por toda a ilusão que muita gente pôs nesse esforço. Isso afinal se frustrou e, em lugar de haver ajudado ao país... Quando vejo o que ocorreu no Peru depois...
O sr. Fujimori deu um golpe de Estado que significou a quebra de uma coisa que para mim era fundamental e que é o que eu mais quis defender quando entrei na política: o sistema democrático, de legalidade. Isso no Peru hoje é uma ficção: voltaram os militares, que são o verdadeiro poder por trás do governo.
E o pior: tudo isso com certa popularidade. Ver isso hoje me dá uma sensação de tempo perdido, de que talvez tivesse sido melhor ter continuado escrevendo.
Folha - Este livro agora é um pouco a vingança da literatura contra a política, ou a transformação da política em literatura.
Llosa - Digamos que sim. Sou um escritor e uma coisa que caracteriza um escritor é que a realidade passa, para ele, pela literatura. Ele só entende de fato aquilo que se converte em literatura.
Essa perspectiva de escritor me ajudou muito quando tentei dar uma ordem ao que eu vivi na época como um caos, como a desordem que é estar metido na vertigem da realidade em andamento.
O livro me foi muito útil porque, quando o escrevi, permaneci totalmente distanciado, sem aqueles ressaibos, aqueles sedimentos que podem ser muito daninhos, destrutivos. Quando terminei, recobrei plenamente minha disponibilidade para a literatura.
Folha - Seu livro pode ser lido também como o relato de sucessivas etapas da perda da inocência: o desencanto com o pai, com a fé católica, com a carreira militar, com o socialismo, com a política profissional...
Llosa - Eu não tinha visto assim, mas é verdade. Há uma série de desencantos, mas suponho que é isso o aprendizado da vida.
Mas ao mesmo tempo, também, há o descobrimento, há a valorização de muitas coisas que eu ia descobrindo, mesmo à custa de muitas frustrações. Por exemplo, a cultura democrática, as idéias da tradição liberal, coisas em que creio e que são para mim ferramentas importantes para fazer frente às injustiças, à brutalidade...
E, claro, a literatura, que foi sempre um extraordinário apoio para confrontar as adversidades.
Olhando hoje para trás, eu não sei se teria resistido de uma maneira sadia, não-traumática, à minha relação com meu pai, se não fosse o refúgio da literatura.
Folha - Por que então num determinado momento a literatura passou a ser insuficiente para o sr.? O que o levou à política?
Llosa - Não sei. Me disseram muitas vezes que entrei na política porque sentia de algum modo que a literatura não me bastava. Mas quando examino a mim mesmo vejo que isso não é certo. A literatura me preenche totalmente.
Agora, também é verdade que muitas vezes nesses três anos –talvez nos momentos de maior intensidade da campanha– eu tinha uma sensação muito forte...
Um escritor jamais tem essa sensação de que esta é a vida se fazendo, a história em pleno processo de gestação, como tem alguém que está numa campanha política, quando uma decisão gera consequências na vida de tantas pessoas.
Acho que a ação atrai a muitos escritores precisamente por isso, porque a literatura... bem, a literatura não é ação, é "só" literatura.
Folha - Se bem que alguns escritores que o sr. preza muito também entraram na política. Por exemplo, André Malraux...
Llosa - Sem dúvida. Sempre tive admiração pelos autores que foram ao mesmo tempo aventureiros: um Malraux, um Koestler, um T.E. Lawrence –grandes escritores que foram capazes de viver não somente na imaginação mas também na aventura, na ação direta.
Ou um Saint-Éxupery, um homem de ação que ao mesmo tempo é um grande escritor. Isso é muito raro. É a exceção, não a regra.
Um escritor geralmente é escritor porque não pode ser homem de ação –e então vive as experiências de forma indireta, vicária.
Creio que em meu caso ocorreu muito isso, embora eu tenha tido uma vida bastante movimentada, como se pode ver no meu livro.

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sobre Vargas Llosa à pág. 5-3

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