São Paulo, sexta-feira, 11 de novembro de 1994
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Um projeto para um programa

TARSO GENRO

Sustento que tanto o "socialismo real" como a social-democracia são ineptos para responder aos desafios do presente. A tendência da social-democracia que ainda não fracassou é marchar ou para o liberalismo econômico mais (ou menos) contido, como ocorre nos principais países da Europa, ou para a ruína; ou, ainda, na boa hipótese, para reformas profundas que possam instigar os elementos de uma nova visão de sociedade.
Seus fragmentos teóricos ainda estão dispersos, mas já foram tocados por Gramsci, Rudolf Bahro, Bobbio e inclusive Hans Kelsen, este no que refere à necessidade de segurança nas relações jurídicas, para uma cidadania efetivamente livre.
A introdução do estatismo como elemento de transição para uma sociedade igualitarista ou tendente à igualdade social teve as versões contemporâneas bem conhecidas: o totalitarismo stalinista, que liberou as energias despóticas do partido único como condutor da sociedade, e o "Wellfare State", que manteve a estabilidade democrática e o pluralismo, mas que se encontra hoje –segundo analistas insuspeitos e ex-adeptos– numa crise sem retorno.
Defendo que, se a polêmica no PT e na esquerda se der entre "socialismo" e "social-democracia", ela será uma polêmica arcaica, pois o problema, hoje, é responder o que é ser esquerda e ser socialista, numa sociedade cujos valores e forma de produzir cada vez mais se afastam da Segunda Revolução Industrial.
A recusa, de minha parte, à social-democracia como projeto de futuro e com caráter universal, não se dá pelo que ela tem de democrática ou por ela ter criado instituições públicas. Ao contrário, porque entendo que a relação Estado-sociedade, que ela gestou, é incapaz de amparar, no futuro, formas de vida civilizadas e solidárias, num novo tipo de sociedade industrial baseada na microeletrônica e na informática.
Essas conquistas podem abrir para os cidadãos amplas possibilidades de controle sobre o Estado, mas a social-democracia jamais deixou de pensar de maneira puramente formal a relação do Estado com a sociedade.
Por isso, em vez do Estado de bem-estar democratizar-se radicalmente, como permite a própria revolução tecno-científica atual (a partir de mecanismos de controle externos à disposição da cidadania), este Estado poderá ser instrumento de um novo bloco de poder já visível em países como o Brasil, promovendo um novo tipo de totalitarismo, ou seja, aquele em que os servos amam a servidão, manipulados pela união da tecno-burocracia estatal com as grandes corporações de comunicação.
Se formos buscar qual o traço essencial dos regimes sociais-democráticos das últimas décadas, visando testar esta possibilidade, vamos perceber que eles se caracterizaram por aumentar as instituições do Estado sem, em contrapartida, ampliar o controle da sociedade sobre essas instituições. Sustento, em consequência, que a atual crise de paradigmas atinge, não só o socialismo, mas também a social-democracia.
As premissas sociais da consolidação de uma nova barbárie pós-moderna já estão se realizando através de uma crescente distribuição desigual do conhecimento e da informação e, ainda, da radical diferenciação dos padrões de eficiência, no próprio mundo do trabalho.
O conhecimento, a informação e a eficiência, que são os elementos cotidianos concretos indutores da exclusão social, na "sociedade informática", tornam-se fatos cada vez mais universais e aprofundam as desigualdades "intra" e entre classes. Assim, sem procurar antever um projeto de sociedade futura e sem um programa que remeta a ela, um partido do puro presente pode se tornar conservador.
As formas de produzir, num futuro não muito remoto, baseadas na variedade e diversidade (que se contrapõem à antiga produção em massa sem variação); as formas de produzir de maneira "enxuta" (que se contrapõem às gigantescas encomendas uniformes da produção massiva e seriada), ambas, estão amparadas num nível jamais visto de aceleradas relações horizontais entre as empresas e destas com o consumidor.
Essa nova situação histórica cria um novo mundo do trabalho, uma nova cultura, um novo tipo de indivíduo e um novo tipo de subjetividade moderna, cujas consequências sociais e psicológicas são ainda desconhecidas, mas já tendem a esgotar os tipos de vida coletiva existentes até hoje.
Se o PT não pensar nisso, não será um partido capaz de orientar uma nova proposta de sociedade, pois quem pensa atualmente estas questões não tem por projeto eliminar as grandes desigualdades que tendem a aumentar na "sociedade informática".
Essa nova situação, de expansão de um novo tipo de individualidade, de rapidez negocial, fluxo ágil de informação, de alta criatividade e de surgimento de novos processos de trabalho, antagônicos ao taylorismo-fordismo –esta situação nova– requer um Estado com capacidade indutora da economia através do controle e da regulação.
Não mais através da presença direta em setores que nem sequer são importantes para os novos padrões industriais do segundo milênio, mesmo porque as grandes corporações empresariais serão cada vez mais dependentes dos que armazenam e produzem a inteligência artificial.
É como se o Estado –hoje– para incluir milhões no próprio mercado, devesse se tornar cada vez mais pesquisa, mais capacidade de investir em infra-estrutura, mais educação e saúde, mais segurança, seguridade, mais poder de polícia fiscal e antimonopolista e menos Estado-empresário.
Mas este Estado só pode se manter "público" se sobre ele pender um controle público não-estatal, uma nova esfera pública, que forme a sua hegemonia na disputa democrática no interior da sociedade civil, para incidir sobre suas instituições chaves: sobre o Parlamento, através da revogabilidade dos mandatos pela soberania popular, a qualquer tempo; sobre o Judiciário, pelo seu controle externo pela sociedade civil; sobre o Executivo, pelo controle da sociedade civil na elaboração e na execução do orçamento público, peça chave para a cidadania emprestar racionalidade ao seu cotidiano econômico.
Essa esfera pública não-estatal, para ter legitimidade, só poderá ter origem na própria cidadania –através de milhares de entidades da sociedade civil, sindicais, empresariais, comunitárias, culturais etc.– para produzirem, pela Constituição, a combinação da democracia representativa com a representação da democracia direta.
Defender este projeto significa abdicar de maneira clara do socialismo capitalista de Estado gerado pelo marxismo barato dos manuais soviéticos e significa, inclusive, descartar a via social-democrática, que tende a agigantar o Estado capitalista-burocrático, em detrimento da autonomia individual e coletiva da sociedade civil.
Em síntese, é preciso deslocar o eixo do programa da esfera do Estado para a sociedade, para reformar esse Estado burocrático, corporativo e monopolístico, em favor de um Estado permeado pelas iniciativas da sociedade civil.
Um Estado-meio, que assegure relações democráticas na concorrência privada, os direitos concretos de cada indivíduo e que possibilite, pelas modernas formas de controle com base na informática e na microeletrônica, a cidadania realizar-se pela transparência reconciliada materialmente com o direito.

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