São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Poder no fio da navalha

ANTONIO KANDIR

A precariedade faz parte da natureza do poder político. Desde Maquiavel, quatro séculos atrás, sabe-se que a manutenção do poder político depende da combinação nem sempre frequente de "virtu" e "fortuna".
Nos últimos anos, porém, a precariedade do poder político tem-se mostrado acentuada mesmo em regimes bastante institucionalizados. É como se o poder político, na forma clássica do Estado, estivesse em xeque, sob a pressão de demandas e exigências que não conseguisse responder satisfatoriamente.
Em casos mais agudos, estabelece-se o mito coletivo de que existem dois "ethos" distintos, um "negativo", da esfera pública; um "positivo", da esfera privada.
Um exemplo notável da acentuada precariedade do poder político nos dias que correm foram as eleições recentes nos Estados Unidos. Dois anos depois de ser eleito com maioria na Câmara e no Senado, Clinton foi fragorosamente derrotado pelos republicanos, não obstante persistente expansão da economia norte-americana.
Perdeu a maioria nas duas casas do Congresso e assistiu à derrota dos democratas também nas eleições para os governos dos Estados. Nenhuma vez neste século ocorreu coisa parecida nos EUA.
O acúmulo de casos com traços semelhantes sugerem a existência de causas estruturais comuns. A meu ver, revelam uma crescente insatisfação com relação aos governos, quaisquer que sejam eles, principalmente no nível nacional.
Essa insatisfação, suspeito fortemente, tem a ver com as transformações decorrentes da aceleração do progresso tecnológico e da globalização dos mercados.
O progresso tecnológico, em particular quanto à velocidade e quantidade de informações em circulação, multiplicou demandas e intensificou exigências da parte da sociedade, dentre elas a de transparência do poder político.
Já a globalização, associada à intensificação e diversificação dos fluxos financeiros, comerciais etc., tolheu a capacidade dos Estados nacionais de dirigir o comportamento dos agentes econômicos, em particular grandes corporações transnacionais, colocando limites estreitos ao poder regulatório e de intervenção do governo.
Além disso, a crescente complexidade das sociedades, associada ao aparecimento de meios técnicos que criam, de fato ou ilusoriamente, a possibilidade de resolução autônoma de problemas, faz com que as funções do governo sejam postas em dúvida.
Nesse quadro, não é ocasional que governos eleitos com grande votação possam passar da "cumeeira ao chão" com velocidade. Pior ainda se gerarem expectativas que não estão a seu alcance realizar. Donde o perigo de excessivo voluntarismo político.
A difícil saída para esse impasse, por outro lado, certamente não está no "laisse-faire" neoliberal que, em oposição à fúria regulatória dos voluntaristas, tende a desdenhar dos efeitos benéficos de toda política pública ativa.
O caminho parece ser outro e passa, a um só tempo, pelo reconhecimento dos novos limites da ação do Estado e reinvenção do "modus operandi" do governo.
Não se trata apenas de redefinir as funções públicas, mas principalmente de redefinir o modo pelo qual as políticas de governo são implementadas, desde as políticas da Autoridade Monetária, num ambiente de globalização financeira, até as políticas sociais, num ambiente em que as organizações comunitárias não-governamentais tornam-se atores-chave.
Mais do que nunca o bom governo exige dos governantes criatividade para inovar e firmeza para realizar inovações num ambiente em que, com os velhos parâmetros em colapso, é crescente a intolerância das pessoas para com o poder público.
Com Fernando Henrique na Presidência, o Brasil está bem servido a esse respeito. Mas as tarefas e os riscos à frente são imensos. O novo presidente o sabe muito bem.

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