São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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A devoção e os milagres da vida cotidiana

LAURA DE MELLO E SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Enraizados no paganismo, os ex-votos viram-se assimilados pelos cristãos já no século 4º, expressando, através dos séculos, a fé do povo nos milagres. Na forma pouco atraente de membros de cera desbotada, figuram ainda hoje nos grandes santuários católicos, pendendo do teto como estalactites macabras.
Entretanto, a partir do século 17, foram as tábuas votivas que ganharam popularidade na Europa meridional e central: pequenas pinturas de têmpera sobre madeira a exprimir, de forma ingênua e muitas vezes tosca, a presença do sagrado e do milagre na vida cotidiana; a viabilizar, pelo menos naquele pequeno retângulo colorido, o encontro entre a personagem sagrada e o beneficiário da graça –cada um circunscrito ao espaço que lhe era próprio.
Mais do que em qualquer outra parte do Brasil, esta tradição vicejou em Minas. Antes dos modernistas "descobrirem" o barroco mineiro, Olavo Bilac e Artur Azevedo admiraram os ex-votos locais, o primeiro considerando-os "quadros adoráveis de ingenuidade", o segundo descrevendo-os com minúcia, e ambos, irônicos e irreverentes, atestando que, no início do século –como bem observa Márcia de Moura Castro neste "Ex-Votos Mineiros"–, "a mentalidade e a religiosidade já haviam mudado".
Os estudos de sociologia religiosa e, mais recentemente, de história das mentalidades, deram aos ex-votos o estatuto de documento respeitável, reconhecendo-lhes o relevo de testemunho no âmbito das sociedades tradicionais. Por contarem estas com um grau considerável de analfabetismo, não podem ser estudadas apenas por meio de fontes escritas: daí a importância das cenas representadas nos quadrinhos de madeira para a compreensão do cotidiano e das sensibilidades de outrora.
A iniciativa de Márcia de Moura Castro em publicar parte do levantamento que fez ao longo da vida é digna de todo o louvor. No pequeno estudo inicial, escrito de forma despretensiosa, mas cercado de rigor e, mais do que tudo, espelhando um conhecimento profundo sobre o assunto, a autora traça o rápido histórico das taboazinhas e esboça reflexões sensíveis sobre seu significado. Aponta, por exemplo, que elas eram provavelmente entregues a profissionais, do que resulta certa uniformidade e padronização no tratamento das cenas: "a maneira como o cortinado está amarrado, as nuvens que envolvem o santo ou a cruz em que está pregado o Cristo".
Ressalta ainda a consonância entre os estilos mais em voga nas manifestações artísticas mineiras e as modestas tábuas votivas, fornecendo assim elementos básicos para se pensar questões teóricas atualíssimas, como a da circularidade entre níveis de cultura (conforme desenvolvida por Carlo Ginzburg em várias obras, com destaque para "O Queijo e os Vermes" e "Mitos - Emblemas - Sinais"), ou da apropriação das práticas culturais (como a concebe Roger Chartier, sobretudo em "A História Cultural entre Práticas e Representações").
Veja-se o caso das rocalhas: ao lado dos arabescos, elas foram tão caras a Aleijadinho e a outros artistas atuantes nas Minas durante o último quartel do século 18 que, hoje, os estudiosos do período preferem qualificar esta fase de Rococó, opondo-a ao período anterior, mais propriamente Barroco. Rocalhas e arabescos acham-se presentes também nos ex-votos: de forma explícita nos medalhões que encimam a cabeceira do doente; de forma estilizada no arranjo das nuvens que emolduram os santos protetores.
Quase todas as tábuas votivas possuem textos que relatam o infortúnio e a graça que o sanou. No final do livro, há um apêndice com transcrições destes escritos, feitas por Djalma Andrade e referentes aos quadros do santuário de Congonhas do Campo. Porém, o grande destaque de "Ex-votos Mineiros" são as reproduções dos quadrinhos. Lá estão filhos, pais ou mães arrancados das garras da morte pela intercessão do santo; cavaleiros feridos por terem caído sob o peso da montaria; trabalhadores a quem uma queda de escada escalavrara a perna; homens abatidos a bordoadas por bandidos; um burro doente salvo graças a Nossa Senhora da Oliveira; escravos brigando por entre a trempe da cozinha, assistidos por um cachorro doméstico –fragmentos preciosos de um mundo ao qual as outras fontes nem sempre dão acesso, e que permitem ao historiador desvendar melhor certos temas caros às sociedades tradicionais: a família e suas estruturas, a hierarquia dos papéis no interior dela, os códigos dos valores que a regulam, o sentido da efemeridade da vida e a iminência da catástrofe.
Documento de história demográfica, social e cultural, o ex-voto desperta no espectador reações afetivas. Nas palavras de um grande especialista, "cada ex-voto nos coloca em contato com uma aventura individual que foi vivida como maravilhosa. E é isto que nos comove, quando descobrimos ou decodificamos estes ex-votos: reencontrar a normalidade a mais humilde mas, ao mesmo tempo, mais profunda; a história dos medos, das alegrias, das esperanças"(*).
Na sua brevíssima apresentação, Lúcia Machado de Almeida captou muito bem este sentimento de familiaridade: diante do ex-voto esmaecido, diz ela, sentimos o impulso de perguntar-lhe, "como a um amigo íntimo": "Como foi isso? Você está melhor?"
(*) Michel Vovelle, "Gli Ex-Voto del Territorio Marsigliese", in "Immagini e Immaginario nella Storia - Fantasmi e Certezze nelle Mentalità dal Medioevo al Novecento", Roma, Editori Riuniti

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