São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Justiça condena cientista a pagar R$ 100 mil por plágio

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um pesquisador do Instituto Butantan foi condenado a pagar uma indenização de R$ 100 mil a uma colega do Instituto Adolfo Lutz por ter supostamente plagiado um trabalho científico dela.
Carlos Augusto Pereira foi condenado em primeira instância "pelos danos materiais e moral que produziu mediante a contrafação" a Yeda Lopes Nogueira, segundo diz a sentença.
Os advogados de Pereira já entraram com recurso para rever a condenação.
"Esse tipo de decisão põe o Brasil na contramão do que se faz no mundo. Se alguém na China quiser pesquisar algo que foi descoberto aqui vai ter que pedir permissão? Isso paralisaria a ciência", diz um dos advogados do réu, João Luís Macedo.
Para o outro advogado, Luiz Bueno de Aguiar, a sentença "nega o avanço da ciência, que exige que se caminhe paralelamente".
Yeda Lopes Nogueira, ex-pesquisadora do Instituto Pasteur de São Paulo e atualmente no Adolfo Lutz, afirma ter sido a primeira a descobrir o efeito citopático –isto é, a capacidade de matar células– do vírus da raiva em um tipo de linhagem celular usada em laboratório, as células McCoy.
Ela comunicou esse resultado pela primeira vez 1982 na 1ª Conferência Internacional sobre o Impacto das Doenças Virais no Desenvolvimento dos Países Latino-Americanos e da Região do Caribe, realizada no Rio no Instituto Oswaldo Cruz.
Um resumo da descoberta foi impresso nos anais do encontro, mas ela demorou para enviar seus resultados a uma revista científica. Só foi fazê-lo em 1989, na mesma época em que Carlos Augusto Pereira e mais três colegas (Cleide Consales, Ronaldo Mendonça e Neusa Gallina) fizeram o mesmo.
As equipes rivais enviaram "papers" (artigos científicos) para a mesma revista, a britânica "Journal of Virological Methods". O artigo de Yeda Nogueira foi recusado; o da equipe do Butantan foi publicado em 1990, o que a levou a processar o colega.
Para a advogada de Yeda, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos, a publicação do "paper" de Pereira sem menção ao trabalho da cientista feriu o direito autoral.
Para os advogados de Pereira, só se houvesse cópia do próprio trabalho haveria a violação. "Os trabalhos são diferentes. Trata-se do mesmo assunto, com a mesma idéia. O direito autoral não protege a idéia", diz Macedo.
"Uma coisa é um cientista ter uma idéia e outro evoluir na pesquisa, fazer a ciência progredir. Coisa bem diferente é um cientista usurpar a idéia do outro e atribuir a si o achado do outro", diz Regina Beatriz.
"O trabalho dela não foi referenciado porque não tinha sido publicado", diz o advogado, que lembra que o artigo de Pereira contém um agradecimento a Yeda pelos seus "comentários úteis".
"Ela publicou o achado em si, isso é o que importa", diz Regina Beatriz. Para ela, o fato de o agradecimento ter usado a grafia errada – "I. Nogueira" ao invés de "Nogueira, Y.L."– já "mostra a má-fé do reú".
Defendendo o atraso na publicação de seus resultados, Yeda diz que preferiu ser cautelosa, "já que esse era um achado novo contrariando um dogma sobre a raiva".
Ela também estava fazendo um mestrado sobre o tema na Escola Paulista de Medicina e seu orientador era primo de Pereira, Octavio Augusto de Carvalho Pereira. Ao perceber que trabalhos sobre o tema começavam a ser expostos em congressos no país, optou por não revelar seus dados ao orientador e foi se desligando do curso.
"Ele refez os experimentos, mas já conhecia os meus resultados", diz Yeda. "Já se sabia que o trabalho era meu", acrescenta. "Ele acrescentou alguns dados, mas nada demais. O fundamental, como o próprio título do artigo mostra, ele atribuiu a ele".
O título do artigo de Pereira e colegas é "Cytopathic effect induced by rabies virus in McCoy cells" ("Efeito citopático induzido por vírus da raiva em células McCoy").
Pereira diz que sua equipe teve vários encontros com Yeda, que fez exposições no Butantan sobre seus achados. "Pedimos referências a elas, mas ela só tinha resumos em congressos, nenhum artigo. Geralmente só são feitas referências a artigos", diz ele (nem sempre; quando é considerado relevante, é comum se ver na literatura científica citação até de "comunicação pessoal").
"Nunca ninguém questionou a prioridade dela. Nossos trabalhos são diferentes, o conteúdo é diferente, usamos cepas de vírus diferentes. Um trabalho confirma o outro. A conclusão básica é a mesma porque é o mesmo fenômeno biológico sendo estudado. Ciência é uma atividade cumulativa", conclui Pereira.
Yeda Nogueira reclama que sua carreira ficou muito prejudicada, pois teve de largar o mestrado "Meu orientador me desligou antes mesmo do prazo", afirma. Ela hoje não tem nenhuma titulação –mestrado ou doutorado– que a capacite a pedir auxílios financeiros a pesquisa em órgãos de fomento como a Fapesp, por exemplo.
"Poucas pessoas trabalham com raiva no país. Fica difícil agora fazer uma pós", declara Yeda.
"Não vejo o dano que o trabalho possa ter causado à carreira dela", diz Pereira, um pesquisador experiente que voltou ao Brasil em 1985 depois de dez anos trabalhando na França.
A advogada de Yeda acha que "toda criação do intelecto humano" é passível de proteção pelo direito autoral e diz que há jurisprudência defendendo a tese. Cita o caso de uma descoberta científica que foi depois usada para a comercialização de um remédio. O descobridor entrou na Justiça e ganhou uma indenização.
A descoberta de Yeda tem um valor potencial no desenvolvimento de vacinas veterinárias contra a raiva.
Os advogados de Pereira acham a indenização injusta e descabida por vários motivos. Para o advogado Luiz Bueno de Aguiar, a sentença concedeu um valor a algo "invalorável", o dano moral. Para seu colega João Luís Macedo, o valor é desproporcional ao que ganha um pesquisador do Estado de São Paulo (algo como R$ 1.500,00 no topo da carreira).
Eles argumentam também que Pereira não ganhou e nem pode ganhar nada com a pesquisa, mesmo que ela tivesse valor comercial, pois ele a fez como pesquisador do Butantan.
Quem poderia aproveitar comercialmente a pesquisa seriam os dois institutos, o Butantan ou o Adolfo Lutz. Como ambos pertencem ao Estado de São Paulo, nem haveria como um processar o outro pela prioridade da descoberta, segundo a dupla.
Cópias da sentença foram enviadas aos institutos. Uma tradução para o inglês também foi pedida pela juíza para ser encaminhada ao "Journal of Virological Methods" pelo Ministério das Relações Exteriores.

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