São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'A Curva do Sino' é um caso de inveja do pênis

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O que é mais grave no caso da mulher americana que matou os filhos, afogando-os num lago? O fato em si de ter matado as crianças ou de ter inventado que elas tinham sido sequestradas por um homem negro? Imagino o inferno em que viveu a população negra da cidade de Union, na Carolina do Sul (EUA), durante os nove dias da mentira pública de Susan Smith.
Qual o verdadeiro objetivo da cena da novela "Pátria Minha", da Globo, que, a título de discutir o racismo no Brasil, humilha sem qualquer escrúpulo um personagem negro que não se defende? São ambos casos evidentes de incitação ao preconceito, e tanto a mulher americana quanto os autores da novela e a emissora deviam responder na Justiça por isso. Não se pode ignorar a influência hegemônica da Globo na formação da opinião da classe média do país.
Basta seguir esse mesmo raciocínio para compreender que o livro "The Bell Curve" ("A Curva do Sino") dos americanos Charles Murray e Richard Herrnstein tem menos novidade e importância científica do que a imprensa –a título de discutir e até derrubar a tese de que o QI dos negros é inferior ao de orientais e brancos– que encontrar nele.
O assunto foi prato cheio, por exemplo, para os colunistas da Folha (todos brancos), que não mediram palavras para sair em defesa dos coitadinhos dos negros. Da ingenuidade superficialóide da colunista Barbara Gancia aos acenos de narcisismo deslocado do articulista Marcelo Coelho, o tom foi sempre esse de um paternalismo que ora beirava o piegas ora não podia disfarçar o racismo "naturalizado" pela elite branca (para usar expressão de Muniz Sodré).
No caso de Gancia, a comparação entre a inteligência de Pelé e a burrice de Xuxa (já não bastasse a insinuação de que inteligência é sinônimo de gorda conta bancária) não tem outra serventia senão a de reforçar o estereótipo de que a inteligência dos negros estão apenas nas pernas (dos jogadores de futebol, basquete etc). O caso de Coelho, mais grave, encerra a questão propondo que se esqueça o livro de Murray e Herrnstein: mas somente depois de o articulista ter escrito nada mais nada menos do que dois longos artigos sobre o tema.
Como se dissesse "agora que eu já opinei, já esclareci, já analisei", vamos esquecer o assunto. A prepotência de Coelho só não é pior que a conclusão de seus dois artigos: o QI dos negros é, sim, inferior ao dos brancos e orientais mas isso de fato não importa.
Em nenhum momento Coelho se refere ao "efeito Flynn", por exemplo, tese de James Flynn segundo a qual o QI de qualquer grupo social é reversível. Só isso bastaria para derrubar a teoria de "A Curva do Sino". A pergunta "blazé" e irresponsável que o articulista se faz (ou faz ao leitor, pior ainda), "será que todo mundo não é racista?", só tem uma resposta: racista é quem pergunta.
Em importante análise da "integração racial na era do neo-racismo" (este sim, artigo brilhante), Muniz Sodré contesta a afirmação de Freud de que "talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem certas dificuldades ligadas à natureza da cultura que resistirão a qualquer tentativa de reforma". Seria, pois, este o caso do racismo: ligado à natureza da cultura, resistiria a qualquer tentativa de reforma.
Sodré discorda: "Tomamos a expressão 'natureza da cultura' de maneira diferente da de Freud. Existe de fato não uma natureza (enquanto modo de ser imutável das coisas), mas uma 'naturalização' da cultura, operada por teorias, discursos e representações atuantes na vida social. A naturalização vem da própria estrutura da sociedade industrial moderna, atravessada por divisões violentas ao nível das relações sociais. E o que na cultura 'resiste à reforma' é a própria idéia de civilização ou cultura enquanto modelo universal de desenvolvimento humano. Esta é a base para as representações racistas".
O fato é que a elite branca –nos Estados Unidos e no Brasil por imitação– se sente no direito de manipular como bem entende os fatos, os dados e as informações que dizem respeito à etnia negra, especialmente ao racismo contra negros. Basta comparar o tratamento que a imprensa dá aos casos de discriminação contra judeus. Por que os colunistas não se deliciam a tratar deste último tema em seus textos? Porque não se sentem igualmente autorizados a fazê-los. Porque pagariam caro pelo amontoado de especulações levianas, que só lhes servissem para florear o ego. Aos negros ninguém precisa pagar nada.
Todas essas manifestações de ordem racista são típica investida da ideologia nazi-fascista que põe a biologia, a genética, a serviço do racismo doutrinário. Não são novas, mas sabem acrescentar uma pesada carga negativa ao estigma de inferioridade da raça negra. O estrago está feito. E parece que era isso que se pretendia.
Não há restauração possível nos mesmos termos. Ainda que se lançasse como teoria científica uma tese qualquer que humilhasse o macho branco ocidental: que o pênis dos negros é vários centímetros maior do que o dos brancos e orientais (tidos como menores ainda) podia até ser esta a tese, se sexo tivesse o mesmo peso que o capital na nossa civilização hipócrita. E se essa constatação não viesse apenas reforçar a idéia sórdida de que os negros são mais animais do que os brancos.
Na verdade, sexo tem o mesmo peso que o capital na sociedade americana, por debaixo dos panos –reprimido na realidade, pela herança conservadora Wasp ("white anglo-saxon protestant" –branco anglo-saxão protestante) e exacerbado na ficção do cinema, por exemplo. Qualquer filmeco americano tem uma cena de sexo quente, que os ianques fazem, aliás, melhor do que ninguém (as cenas, quero dizer).
Em seguindo essa linha de raciocínio, é concluir que o livro "A Curva do Sino" não passa de um caso de inveja do pênis. Basta lembrar que o sino (e o desenho do gráfico de QI) é uma forma fálica. Talvez fosse melhor se chamar "A Curva do Pênis".
Os Estados Unidos sempre foram o principal palco do racismo contra negros no mundo, assim como a Alemanha foi contra judeus na primeira metade deste século. Não há pior lugar no mundo para um negro hoje do que os Estados Unidos. O livro de Murray e Herrnstein só podia ter sido gerado no seio da sociedade americana –do mesmo modo que o sistema de cotas para negros nas universidades e instituições públicas americanas.
É o reverso da moeda. Nenhum branco tem o direito de questionar isso. É a defesa possível contra a agressão absurda. Um homem branco não tem idéia da humilhação que é ser discriminado pela cor da pele.
No Brasil, onde os órgãos oficiais, a imprensa e os próprios órgãos de defesa do negro incorrem no equívoco de tratar a questão do racismo como se aqui fossem os Estados Unidos, a discussão se evapora. O racismo brasileiro é radicalmente diferente do americano, e deve, portanto, ser tratado de maneira diferenciada.
No que se refere ao Brasil, conclui Muniz Sodré –segundo maior país negro do mundo, pois cerca de 60% da população brasileira seriam classificados como negros nos Estados Unidos–, "embora sejam frequentemente racistas as representações sociais das elites dirigentes (...) o país não é operativamente racista. As ofensas raciais podem inclusive ser coibidas por lei penal".
Acontece que nas representações de sua auto-imagem, o Brasil não se acha um país negro. E pouco importa, de fato, a classificação que façam de nós os americanos. O racismo brasileiro, como também aponta Muniz Sodré, revelou-se impotente para impedir a miscigenação. Somos um país miscigenado, onde o racismo existe mas onde a tolerância e a simpatia entre as raças é inédita no mundo em igual proporção. Não se pode perder de vista esse fator importantíssimo.
Não se pode principalmente concordar com que se instale aqui a imitação barata do modelo americano –nem do racismo nem da conduta politicamente correta. Exemplo da imitação: a "Revista da Folha" reservou recentemente uma pequena coluna para temas da "negritude", chamou sua negra para escrever e intitulou o espaço de "Black". Detalhe: a coluna tem a mesma concepção, e quase a mesma página, da coluna "Gay" da mesma revista. Ou seja: são espaçozinhos reservados, de maneira politicamente correta, para as "minorias" negras e homossexuais. Seria revoltante, não fosse apenas patético.

Texto Anterior: Racismo, educação e eugenia
Próximo Texto: O que é "A Curva do Sino"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.