São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

HAROLD BRODKEY
ESPECIAL PARA A "THE NEW YORKER"

Os homens da ambulância chegaram, e expliquei-lhes, num sussurro, que eu não conseguia mais andar nem me sentar na cama. Nem respirar. Eles desceram para pegar uma maca e oxigênio. Respirando por um tubo enfiado em meu nariz, deitado na maca, coberto por um lençol, fui levado para fora do apartamento, colocado no elevador, carregado pelo hall; passamos pelo porteiro, depois pela calçada, e por alguns instantes me vi ao ar livre; por fim puseram-me na ambulância. Foi assim que terminou minha vida. E começou minha agonia.
Ellen afirma que me comportei como um herói, sem nunca perder o autocontrole, e que a surpreendi quando aceitei, sem criar problemas, que tratassem minha infecção de Pneumocystis em vez de pedir que me dessem um sedativo e me deixassem morrer. Diz ela que, na época, chegou a pensar que morreríamos juntos, nós dois –que nos suicidaríamos ao mesmo tempo– depois de alguns meses, quando tudo estivesse em ordem. Mas Ellen não queria que eu a deixasse naquele momento, assim de repente.
A maioria das pessoas que a conhecem vêem Ellen como uma tirana miúda, uma espécie de Greta Garbo em miniatura. Ela está grisalha e nunca fez plástica. Continua fisicamente atraente –suas formas são belas, estilizadas, como a tampa de um perfume caro. É muitíssimo voluntariosa; Ellen é a minha credencial humana. As pessoas a consideram bonita, confiável e sensata, independentemente do que possam pensar de mim. Observando o comportamento de Barry –Barry Hartman, meu médico– e das enfermeiras atarantadas, convenci-me de que também eles a viam assim. Todos acatavam as opiniões e vontades dela, não as minhas.
Lembro-me de pensar que não queria que ela me visse como um bobo e um explorador por eu lhe pedir que cuidasse de mim naquele estado –sofrendo de uma doença que, além de incurável, está associada a um estigma sexual. Talvez ela viesse a me desprezar. Uma vez conheci uma mulher bem casada, indiscutivelmente bem casada, dentro dos limites do possível, cujo marido, um banqueiro, homem inteligente, adoeceu e impressionou a todos com o esforço que fez para voltar ao estado normal, para curar-se. Pois uma vez ouvi esta mulher dizer: "Eu queria que ele entregasse os pontos". A luta deste homem contra a doença durou tanto tempo, e de tal modo dominou tudo que o cercava, que começou a matar sua mulher. E dele a única coisa que permanecia viva era a vontade de lutar.
Em casa, durante o fim de semana, eu me sentia tão mal que não conseguia encontrar um ponto de equilíbrio em meio a tantas sensações horrendas. Era estranho como a doença piorava a cada hora que passava, com uma espécie de rapidez discreta. Eu nunca estivera doente daquele jeito. Vez após vez, meu mal-estar atingia um nível de horror que, tão logo se estabelecia, caía de repente para um outro ainda pior. Nada continha o processo de estrangulamento. Tentei manter uma fachada diante de Ellen até o momento em que, numa espécie de silêncio interior extremo, todos os recursos me falharam.
Mas quando Barry disse que eu estava com Aids, retruquei que eu não acreditava. Ele insistiu: "É melhor acreditar". Então Ellen disse alguma coisa, perguntou-lhe o que ia acontecer, e Barry respondeu que quando a infecção de Pneumocystis fosse debelada eu teria a possibilidade de viver mais alguns anos.
Disse eu: "Mas vai ser constrangedor". O estigma. Incontinência. (Eu teria de usar fraldas?) Cegueira. Barry afirmou que os anos que me restavam seria bons, bastante bons, vivíveis.
Não gosto de assumir uma atitude pequeno-burguesa defensiva, mas foi mesmo uma decisão pequeno-burguesa, sem nada de glorioso, a que tomei: tentar tocar para a frente, com Aids e tudo, viver com Aids mais um pouco, em vez de morrer da infecção de Pneumocystis logo de uma vez.

Segundo Ellen, quando ficamos sabendo, numa segunda-feira, ela estava sentada na única cadeira que havia no quarto do hospital. Para provar que se trata de uma legítima lembrança brodkeyana, em conformidade com o método e as teorias brodkeyanas, ela especifica que Barry estava encostado no parapeito da janela com os braços cruzados quando nos disse que eu estava com Aids. E que estava fazendo calor. E que eu me comportei de modo curiosamente jovial e razoável. Lembro que Barry estava com um braço apoiado no parapeito; em seguida, cruzou os braços outra vez e afirmou: "Você está mesmo com Aids". E, mantendo a mesma atitude, ficou olhando para mim.
Em meio aos pensamentos turvos que se entrecruzavam a toda velocidade na minha cabeça, minha intuição de escritor me dizia que aquilo era um equívoco, aquele elemento não cabia na história de minha vida. Eu julgava-me presunçoso demais para morrer daquele jeito. Meus pensamentos eram ilógicos, febris, mas minha cabeça continuava operando como se fosse racional –nossa mente, a mente de qualquer pessoa, está sempre inquieta, permanece num estado constante de inquietude, como a luz, mesmo quando dormimos, quando a luz brilha dentro do cérebro e não fora dele. Recebi o primeiro impacto da notícia de que eu estava com Aids não com a consciência dominadora com a qual tento escrever obras de ficção –eu não sentia aquele isolamento– mas com uma sensação diferente de solidão. Talvez sentisse também a infelicidade de Ellen. Talvez me desse conta do que eu, por assim dizer, havia feito com ela.
E de repente vi a coisa de modo diferente: afinal de contas, a morte –e a Aids– são lugares-comuns. "Grandes coisas", disse eu. O comentário não teve o efeito de aliviar a expressão de ninguém. "Meu Deus", exclamei. "Que aporrinhação." Barry falou em tranquilizantes e acompanhamento psicológico para aliviar o choque e o desespero, a dor natural. "Tudo bem", reagi, acrescentando, arrogante: "Olhe, eu vou morrer, só isso. Não é como ficar careca, nem ficar totalmente sem dinheiro. Não é uma coisa que eu vou ter que aturar."
Minha intenção era fazê-los rir. Queria também que eles me admirassem, é bem verdade, mas além disso queria que Ellen parasse de estremecer por dentro daquele jeito, e tinha medo de exclamar: "Meu Deus, o que foi que eu fiz?" ou "Estão vendo o que aconteceu comigo?" ou "Foi tudo por minha culpa". Eu tenho uma covardia curiosa em relação ao sofrimento. Eu preferia sofrer sem ele. Os dois me observavam, prontos para me darem solidariedade e conforto. Ellen virou-se para Barry, cujo rosto exprimia reprovação. Ou preocupação. "A gente pode fazer alguma coisa quando bater o desespero; pode apelar para remédios", ele disse para Ellen.
Mas para quem já foi, como eu fui, muitos anos atrás, uma criança traumatizada, e consegue recuperar-se, como eu consegui, há uma parede que o protege da dor e do desespero, que o protege do sofrimento, que o impede de cagar-se todo. É este o meu padrão –enfrentar todo o peso de minha vida sem perder o controle dos intestinos. O resto é loucura, raiva, humilhação.

Para ser sincero, o esforço de escrever, e mais a idade, e a sufocação opressiva causada pela doença, e minha melancólica convicção da importância de minhas idéias (do que minha obra apresenta), e minha inútil defesa desta obra –tudo isso me havia cansado de tal modo que a idéia da morte me veio como um alívio. Mas eu queria também fazer um gesto de desafio à Aids, um gesto de dissidência. Quer dizer, era também uma questão de estilo. A doença e as coações que ela representava (como todas as coações) eram desprezíveis. Eu imaginava que depois seria necessário fazer as pazes com ela, com humildade, quando a morte estivesse próxima, mas ainda era cedo para isso.
E parecia-me que, se eu estava com Aids, Ellen tinha o direito, talvez até o dever, de me abandonar; o fato de eu ter contraído esta doença suspendia todos os contratos e todas as emoções –anulava o sacramento do matrimônio. Representava um novo estado, no qual, num certo sentido, não existíamos. O que éramos antes dissolvera-se como se por efeito de uma radiação, ou de um ácido. Talvez o sacramento permanecesse, mas tudo agora dependia de Ellen, das coisas em que ela acreditava: a meu ver, ela não tinha mais nenhuma obrigação de ficar comigo. Porque, para começo de conversa, eu não era mais eu. E ela já havia sofrido o bastante.
Sou uma pessoa particularmente apta para sofrer catástrofes, por conta de minhas idéias e minhas crenças; estou acostumado a reconstruir-me no meio de catástrofes. E as idéias, a linguagem, deram-me forças para suportar os desastres mais horrorosos, vez após vez. Sou como uma barata, talvez –uma barata aidética, vaidosa, muito mais covarde que o Gregor Samsa de Kafka. Ellen não é assim. Ela tem uma identidade concreta, familiar. Muita gente –inclusive eu– gosta dela. Seus filhos nunca estão sozinhos no mundo, o que às vezes os irrita. Ela tem uma atitude de credulidade com relação às notícias más, uma postura de santa rebelde que me dá nos nervos. Sua rebeldia estende-se por toda a sua existência –volta-se contra Deus e a morte, contra a sociedade, contra os homens. Como ela consegue conciliar esta rebeldia com o decoro que manifesta no dia-a-dia é coisa que não entendo.
Digo-lhe que somos covardes, somos artistas, vivemos em fuga, somos e temos que ser pessoas horrorosas para realizar nossa obra. Ela não me dá ouvidos quando falo sobre a arte e a vida nesses termos. Ellen ao mesmo tempo acredita e não acredita no que digo e no que acredito. "Eu não consigo viver assim", diz ela. Assim, tenho consciência, muitas vezes, de que conviver comigo é, para Ellen, até certo ponto, uma missão.
Tenho diversos tipos de humildade, mas sou arrogante. Sou uma pessoa semifamosa, e vejo o que vejo. Examino tudo que se coloca à minha frente –como um joalheiro. Sou um judeu do Meio-Oeste, coisa muito diferente de um judeu de Nova York. Sou tão arrogante que só acredito numa formulação quando ela tem o cheiro ou a força da inspiração. Jamais, desde a infância, acreditei na possibilidade de que alguém me confortasse.
Continua à pág. 6-5

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